domingo, 7 de setembro de 2008

GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO & QUIPROQUÓS CAPÍTULO IX


Durante sua caminhada ainda sem destino, Gumercindo desvencilhou-se de seus pensamentos ao observar um enorme prédio, ficou espantado com sua altura, uma bandeira minúscula na ponta do prédio que parecia estar entre as nuvens, sua imagina-ção o levou até o último andar do prédio, não teria coragem para tentar subir até lá, o prédio imponente como era, devia ter seus guardiões severos e uma regra que com certeza o impediria de entrar.
Na sua imaginação o alto do prédio era fabuloso, dava para tocar as nuvens e talvez à noite pudesse pegar uma estrela ou pedir benção para Deus com as próprias mãos. Dali podia ver a cidade inteira e as pessoas se tornariam invisíveis, quase nada escaparia ao seu olhar, se sentiria o maior homem do mundo, o bosque da cidade, os ônibus, todos estariam ao alcance de suas mãos.
Porém a buzina alta de um desses ônibus desviou sua atenção e imaginação, espantou-se com o barulho e aquietou seus devaneios.
Novamente continuou seu caminho, dessa vez pensou em conseguir um destino, lembrou-se que precisaria dormir à noite e teria de ter um lugar para ficar.
Pensou nos bancos das praças, mas logo notou uma guarda com roupas escuras e cassetete na mão expulsando um velho mendigo que deitava num dos bancos.
Sentiu medo, imaginou se fosse com ele, teria medo de apanhar.
Durante seu trajeto, viu uma pequena ponte, onde raros carros passavam, então adentrou embaixo dela, sentiu conforto ali. Atrás de dois pilares que a sustentavam, tinha um enorme espaço limpo e bem cuidado, onde poderia dormir tranquilamente, protegido da chuva e do sol, além de ser fechado por uma parede enorme que fazia um bloqueio do vento da noite, o protegendo do frio.
Decidiu ficar ali, gostou muito daquele lugar embaixo da ponte, sentia-se que não seria incomodado, apenas um zum-zum, quando os carros passavam eram ouvidos e pela aparência do lugar, ninguém estivera ali por aqueles dias.
Sentou no lugar que escolheu para descansar e apertado, urinou ali mesmo, arrependeu-se mais tarde ao sentir o forte mau-cheiro que ficou, deitou-se e logo à noite chegou, antes de dormir, pensou no que lhe acontecera naquele dia. Dormiu e teve pesadelo com a mulher estranha, com o cozinheiro ranzinza de onde trabalhava e com o rapaz drogado.
No pesadelo todos eram seus inimigos e queriam agredi-lo, fugia e se escondia, mas eles sempre tentando agarrá-lo, até que conseguiu subir no prédio mais alto da cidade de São Paulo e ficou seguro. Lá ninguém o alcançaria e então no seu pesadelo, eles ficavam xingando e reclamando da má-sorte, de não poder agarrá-lo.
Quando já estava sentindo-se livre no alto do prédio, eis que seus algozes apareceram, além de outra figura conhecida: O contratante, que empunhava uma picareta nas mãos.
Assustado, tentou novamente fugir, a mulher estranha rodava sua bolsa, o rapaz drogado tinha convulsões, babava e fazia caretas, rastejando em sua direção. O cozinheiro ranzinza portava uma faca enorme e uma lima onde a amolava.
No seu traje branco, havia manchas de sangue que davam àquele homem, a imagem de um assassino.
Em seu pesadelo a sensação de tranquilidade foi-se embora, arregalou novamente os olhos e com os lábios cerrados, correu até o parapeito do prédio, continuou a ser seguido a passos lentos pelos seus algozes, então percebeu que a única maneira de livrar-se seria pulando daquele enorme prédio.
O fez, caiu em grande altura e quando começou a imaginar a queda, acordou, ensopado de suor.
Uma sensação de tranquilidade o confortou, porém naquela noite não conseguiu dormir e olhando para o teto da ponte e sentindo o zum-zum de um carro ou outro que passava esporadicamente naquelas horas da noite. Refletia sobre como as pessoas agiam e desis
- tiu de pensar ao perceber que no fundo eram todas iguais.
Ao amanhecer, levantou-se cedo, faminto e ainda cansado, caminhou até a praça para arranjar o que comer. A noite embaixo da ponte não lhe foi fácil, os pesadelos não lhe permitiram um sono agradável e o lugar apesar de limpo e protegido contra o vento, judiou de suas costas que já estavam acostumadas com o conforto da cama do alojamento.
O resultado foi ficar com o corpo todo dolorido, mesmo assim a fome não deu trégua e logo a “onça” do seu estômago começou a bramir:
- OHAAARRRRR , OHAAARRRRR...
Com a mão no estômago para controlar a ira da “onça”, continuou a caminhar em busca de comida. Mais alguns passos e a “onça” terrível voltou a agir:
- OHAAARRRRR, OHARRRRRR...
Desesperado, apressou o passo, quando viu uma grande concentração de pessoas num enorme salão, aproximou-se, observou um homem bem-vestido de terno, falando ao microfone:
- Então irmãos quem aqui aceita Jesus?
Gumercindo sentindo a fúria da “Onça” e sem perceber o que dizia o homem bem-vestido, ergueu a mão e logo o homem apontou para ele.
- Ali, temos um irmão!
Eis que a multidão abriu espaço e todos fitaram Gumercindo, que mal conseguia caminhar com a fome atiçada pela “onça”. Ainda com a mão na barriga, cambaleando, algumas pessoas o ajudaram a ir até ao homem bem-vestido seguido de aplausos da multidão.
Levaram-no até ao palco onde estava o homem bem-vestido e lá o sujeito começou a falar-lhe:
- Então irmão, aceita Jesus como salvador?
Gumercindo ainda com dor, abaixou-se e sussurrando respondeu ao microfone:
- Se ele me der de comer aceito.
A multidão observou o homem bem-vestido apavorada, disfarçou com as palavras de Gumercindo.
- Você quer dizer que aceita não é irmão? – E novamente o homem bem-vestido colocou o microfone para Gumercindo falar, mas a onça continuava sua fúria e não conseguia controlar sua fome e apenas abriu a boca quando o microfone se aproximou e o som do urro da onça veio com força:
- OHAAARRRR... OHARRRR... OHARRR... OHAAARRRR...
O barulho do urro foi enorme e explodiu nas caixas de som, assustando os presentes. O homem bem-vestido sem jeito e assustado com a situação, inventou uma desculpa para aliviar as pessoas:
- O irmão está endemoniado. Saia demônio, do corpo desse bom homem, saia demônio.
- E bradava com a mão sobre a cabeça de Gumercindo como se realmente excomun- gasse um demônio. Seus auxiliares seguraram Gumercindo que já abatido, mal conseguia se manter em pé, e a onça voltou a bramir:
- OHAAARRRR, OHAAARRRRR...
E já não assustava ao homem bem-vestido que se satisfazia, quando Gumercindo liberava o urro creditando-o ao demônio que dizia possui-lo. Colocou as duas mãos sobre Gumercindo, enquanto um dos auxiliares segurava o microfone para dizer em tom forte as palavras que excomungaria o demônio:
- Saia demônio, aqui não é teu lugar, em nome de Jesus, liberte esse pobre homem, eu ordeno que liberte esse homem, ele me pertence. O rebanho de Deus o quer de volta, saia demônio.
Quase desmaiando com a fúria da fome e a pressão do homem bem-vestido, Gumercindo rodava a cabeça com os olhos arregalados e a boca aberta. Derrepente observou entre a multidão atenta um sujeito gordo, segurando um enorme lanche.
Boquiaberto, o sujeito gordo nem se mexia enquanto aguardava o desfecho do episódio para comê-lo.
Gumercindo lambeu os lábios e com a fúria da “onça” somado à sua pouca mas resistente força, conseguiu se libertar dos auxiliares derrubando o homem bem-vestido com seu microfone, em seguida correu em direção ao homem gordo, apanhou o lanche que segurava e correu se afastando da multidão. Comia enquanto corria, e a multidão espantada o observava afastar-se.
Arfando e ainda cambaleando, devorava o enorme lanche, mal sabia o gosto, não dava tempo de saboreá-lo. Acalmava a onça do seu estômago a cada pedaço engolido.
Devorou o lanche e em pouco tempo a “onça” já não bramia, nem miava, sossegou.
Então Gumercindo a passos lentos, pensou em toda aquela loucura e voltou para seu reduto embaixo da ponte.

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