domingo, 31 de agosto de 2008

GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO & QUIPROQUÓS CAPÍTULO VIII


As refeições sempre feitas na cozinha-refeitório do alojamento, eram servidas em bandeijões e os trabalhadores esfomeados faziam uma enorme fila e comiam o máximo que podiam.
Gumercindo preocupado com a volta da onça fez o mesmo e adorou a comida do cozinheiro ranzinza. Após o almoço foi falar com o cozinheiro que apressava os trabalhadores para poder lavar os bandeijões, pressa desnecessária para aqueles sujeitos esfomeados. Gumercindo aproximou-se do cozinheiro que segurava algumas bandejas sujos e comentou:
- Tua comida é boa.
O cozinheiro ranzinza observou o rosto de Gumercindo com seu olhar maldoso e respondeu:
- Não pedi a tua opinião.
Então espantado com a resposta ficou em silêncio e foi descansar para retornar ao trabalho.
Os dias passaram e assim era a rotina do trabalho de peão-de-obra no alojamento. Resumia-se em: acordar, tomar café com pão, trabalhar, almoçar, descansar, trabalhar, almoçar, descansar, trabalhar, jantar, tomar banho, dormir, acordar e repetia tudo novamente. Aos domingos , único dia de folga, os trabalhadores se reuniam para contar piadas, jogar baralho e sentir saudade.
Gumercindo nada fazia, ficava pensando, tinha vontade de conhecer melhor a cidade, mas o passeio e a saída do alojamento não lhe eram permitidos.
O contratante avisava a todos:
- Querem sair? Podem ir, mas não os aceito de volta. – Não querendo ficar sem o trabalho, Gumercindo não saia, mas sentia saudade da vida na rua, de ver as outras pessoas das árvores, dos trocados que ganhava. Lembrou-se dos míseros trocados e percebeu que até então nada ganhou e estava há dois meses no trabalho.
Então após o descanso de uma semana de trabalho, decidiu perguntar ao contratante sobre o fato. Esperou a manhã de trabalho da semana seguinte, quando o contratante chegava na obra da mansão, ao vê-lo, deixou os três pedreiros e foi falar lhe falar:
- Ei seu contratante...
- Diga.
- É sobre dinheiro, quanto vou ganhar?
O homem disfarçou, olhou para alguns papéis que segurava nas mãos e respondeu:
- Que dinheiro? Te dou comida, casa e até mando lavar suas roupas.
Gumercindo pensou na resposta e continuou:
- tá certo, a comida é boa, a casa também, roupa eu tenho pouco, na rua lá no Ceará eu ganhava uns trocados e podia sair para ver as árvores, gente passando e voltando, os carros... eu sinto falta disso.
- Escute aqui Gumercindo, você devia me agradecer por te ajudar e não me pedir dinheiro. Quantas pessoas não gostariam de estar no seu lugar hein? Se tu sai hoje, amanhã eu consigo dez para por em seu lugar, você que sabe. Se quiser ir, pode ir, mas eu te aviso, lá fora a vida é dura, tu vai passar fome, frio, desprezo, não esqueça que aqui não é o Ceará.
- Então o senhor não pode me levá de volta?
- Claro que não, eu paguei p’ra tu vir, eu não pago para tu voltar, ficou louco? P’ra mim é prejuízo.
Gumercindo voltou a pensar, pensou e decidiu voltar ao trabalho.
O contratante chamou um dos seus trabalhadores mais próximos e ordenou:
- Fica esperto com esse sujeito.
O trabalhador fez sinal de cabeça, concordando com a ordem. Gumercindo trabalhou como nos outros dias e sentia-se triste em não poder receber seus trocados e comprar seu pingado na hora do almoço, ou passear pelas praças. Porém o que o contratante disse, fazia sentido, não conhecia São Paulo e podia sofrer muito, sem conhecer ninguém naquela grande cidade.
Ao passar dos dias foi se decepcionando com a própria cidade, de que adiantava estar em São Paulo com toda aquela riqueza que lhe foi dita diversas vezes no Ceará, mas não podia conhecer, e nem desfrutava da beleza das árvores e das praças, nem conhecia as pessoas. Vivia ali com os trabalhadores que eram como ele: Nordestino e nem parecia Ter saído do nordeste, ainda por cima sofria a mesma indiferença ou quando esta faltava, era motivo de chacotas pelos homens hostis que com ele trabalhava. Sentiu apenas um pouquinho da cidade quando chegou, mas teve que sofrer no pau-de-arara, ser despejado e caminhar muito para ter sentido, apenas isso.
Não achava justo ficar ali sempre trabalhando, apenas para comer e Ter lugar para dormir.
Aos poucos foi se cansando e pensava muito durante o trabalho e assim se foi três meses, quando enfim decidiu partir:
- Hoje vou embora. – Falou ao levantar-se da cama, rapidamente vestiu suas roupas velhas, tomou o café com pão, enquanto os trabalhadores cochichavam a respeito do que disse, então foi até o cozinheiro e avisou:
- Hoje eu vou embora, não quero mais viver aqui, quero conhecer a cidade.
- Ficou biruta? – gritou o cozinheiro espantado. – Você não pode ir embora.
- Como não?
- Está devendo, trabalhou aqui, mas comeu durante esse tempo todo.
- Mas eu preciso ir embora.
- Por que eu não aguento mais viver aqui.
Durante a conversa, o contratante apareceu e pediu explicações para um dos trabalhadores:
- O que está havendo?
- O Gumercindo quer ir embora.
O contratante então foi em direção à Gumercindo e pediu para explicar o motivo da conversa:
- Por que quer ir embora Gumercindo? Aqui tu tem tudo, o que tu quer mais?
- Quero ver a cidade, passear, ganhar uns trocados, tomar um pingado.
O cozinheiro ouvindo a conversa o alertou:
- Lá fora tu vai passá fome.
- Eu sou acostumado a passá fome.
- Mas e o frio, lugar p’ra dormir? – continuou o cozinheiro.
- Eu sempre dormi pelo caminho, durmo em qualquer lugar.
- E seus amigos? – Tentou convencer o cozinheiro.
- Eu não tenho.
O cozinheiro ficou aborrecido e voltou aos seus afazeres, o contratante pensou no que faria então resolveu:
- Olha Gumercindo, se tu quer ir, vá. Só que pense bem, eu não vou te querer de volta e não aceito reclamação.
- Tudo bem, eu não vou reclamá. – respondeu Gumercindo e sem despedir-se, saiu em direção ao portão de entrada. Logo um dos trabalhadores levantou-se da mesa do refeitório e sugeriu ao contratante:
- Se quiser podemos pegar ele na marra, damos um pau nele e fica aqui para sempre.
- Não, deixe que vá, amanhã ele volta, conheço esses tipos. – respondeu o contratante, enquanto todos observavam a saída de Gumercindo. Ao aproximar-se da porta, o contratante decidiu falar:
- Ei Gumercindo, boa sorte, mas se precisar pode voltar.
Gumercindo olhou para os trabalhadores, para o cozinheiro que fazia cara de triste e o contratante e em silêncio voltou a abrir o portão. Ao abri-lo uma forte brisa fechou seus olhos e apontou o caminho da rua.
Na rua sentiu-se feliz, o barulho do trânsito o agradava, sentia-se livre, perambulava por entre as praças sem destino certo, sentou-se num banco, observava as pessoas e degustava a beleza da manhã. Respirava o ar agradável do bosque, achou engraçado a estátua de um vulto que desconhecia, forrada de fezes de passarinhos.
As pessoas não se importavam com a sua presença e ele também não dava importância para a atenção dos transeuntes.
Continuou a caminhar pelas ruas da cidade em determinado momento quase foi-se embora com sua curiosidade, pobreza e tudo o mais. Ao atravessar uma avenida descuidou-se e um carro desviou com uma freada brusca, evitando o atropelamento com uma buzina alta e vários palavrões.
Gumercindo assustado com o episódio, evitou as grandes avenidas, e continuou seu caminho sem destino pelas ruas mortas.
Aquelas ruas suportavam em sua vizinhança casas e pessoas velhas, além de convidados nada ilustres, como bêbados-mendigos, prostitutas, travestis e outros párias da sociedade.
Enquanto caminhava, Gumercindo arregalava os olhos ante o que via; mulheres estranhas, sujeitos que como ele não tinham para onde ir e ficavam por ali gastando o que não possuíam com bebida.
Espantou-se ao perceber um jovem entre eles, com roupa gasta como a sua, aparência de bom-menino, mas mexia freneticamente os olhos e a boca num movimento que aterrorizava quem o observava.
Gumercindo desviou seu olhar e não entendeu o motivo daquela reação do menino, sentiu pena, mas confundia-se com aquilo, apesar de nunca ter bebido.
Nunca teve vontade de beber e não dava importância à bebida, sabia quando alguém estava bêbado e como ela reagia, e sua reação em nada parecia com a daquele rapaz. Então preocupado parou com sua caminhada, observou novamente o garoto com seus movimentos frenéticos e perguntou para uma mulher estranha:
- O que ele tem?
A mulher estranha fitou Gumercindo, apoiou o braço esquerdo com o direito, enquanto fumava um cigarro, então com uma voz masculina respondeu:
- É a paulada do crack.
- Do que?
- Crack meu bem, vai me dizer que não conhece?
Meio abobalhado e notando que a mulher estranha mais parecia um homem vestido de mulher, Gumercindo continuou:
- Não conheço não.
A mulher estranha, deu uma tragada em seu cigarro, jogou a fumaça para cima e com a voz baixa e um leve sorriso explicou:
- Meu bem, você é ingênuo, aquele menino tomou droga e o que ele tomou chama-se crack e o efeito é aquilo que você está vendo.
- Mas parece que ele vai morrer.
- Que morrer que nada bem. – Disse a mulher estranha chacoalhando a cabeça para o lado e em seguida ajeitando seus cabelos cacheados à altura do pescoço. – Este daí daqui a pouco está atrás de mais crack, é só o efeito passar que ele quer mais.
- Mas por que?
- Por que ... – Quando a mulher estranha se preparava para responder a Gumercindo, surpreendeu-se com o rapaz que de repente deixou aquele movimento com os olhos e a boca, ergueu a cabeça, olhou para os lados, sorriu, levantou-se e começou a andar.
Gumercindo afastou-se da mulher estranha, abordou o rapaz, e o indagou:
- Ei, você está bem.
O rapaz estranhou a pergunta, mas respondeu:
- Tô sim.
- E onde vai agora? – continuou Gumercindo.
- Vou buscar outra pedra.
- Outra o quê?
- Pedra parceiro, deixa eu ir. – E apressado deixou Gumercindo e seguiu rumo atrás de mais entorpecente. Boquiaberto ficou ante a reação da mulher estranha:
- AH, AH, eu não falei? – debochou.
Então confuso com a atitude do rapaz em querer sentir-se mal, em passar mal e ficar com uma aparência medonha, Gumercindo continuou a caminhar seguido pelo olhar da mulher estranha.

domingo, 24 de agosto de 2008

GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO & QUIPROQUÓS CAPÍTULO VII


Ao chegarem no alojamento, o contratante apressou-se em apresentar o quarto onde Gumercindo iria dormir, teria de dividi-lo com mais quatro homens que trabalhariam com ele. O contratante lhe explicava os detalhes enquanto apontava o canto do banheiro, os outros quartos e a cozinha.
Era uma espécie de cortiço, muito simples e organizado, com uma dezena de quartos cada qual suportava cinqüenta homens, todos contratados para trabalhar numa obra ao lado, onde seria construída uma enorme mansão.
- Bem Gumercindo, tu pode tomá um banho e isperá o almoço lá no teu quarto.
Gumercindo sentia-se bem ali, acreditava que os outros trabalhadores o receberiam com a mesma cordialidade do contratante.
Então fez o que o contratante sugeriu; foi ao banheiro coletivo sem toalhas ou roupas limpas para tomar banho, e lá havia alguns homens nos chuveiros que eram muitos, onde banhavam-se à mostra.
Os homens nordestinos como ele vindos de estados variados, demonstravam serem muito alegres e brincalhões. Como crianças faziam graça com a aparência do outro e com hostilidade receberam Gumercindo.
- Ih, já chegou um pé-inchado. – disse um sujeito alto, barba rala com dois dentes em falta no centro da boca.
Gumercindo ficou quieto, liberou um leve sorriso e não entendeu a brincadeira, tirou a roupa após o ato e seguiu-se uma grande gozação.
- Olha o tamanho da pomba dele. – gritou um dos homens.
- Deve ser igual de japonês. . . – comentou outro gargalhando.
- Encolheu por que não usa, Ah, Ah, Ah. – zombou um terceiro.
As gargalhadas era geral, Gumercindo fez cara triste e sentiu-se mal, mesmo zombado tomou banho, mostrando seu corpo ridicularizado. A água lhe confortava e lhe fazia bem, seu corpo franzino, com uma barriga saliente para sustentar estava cansado, e necessitava comer.
Após o banho se vestiu com a mesma roupa, saiu no meio da zombaria, não sabia o que dizer ante a algazarra dos homens, então calou-se e procurou o que comer.
Chegou na cozinha e um sujeito gordo cara-de-ruim, vestido de branco o atendeu:
- O que tu quer?
- Eu quero comê. – respondeu submisso.
O homem olhou dos pés a cabeça de Gumercindo e continuou:
- Tu veio donde?
- Do Ceará.
- Ah, pensei que tu era Paraense, como eu, agora não é hora de comê não. Almoço já passou, espera a janta .
Durante a conversa um dos sujeitos que estavam no banho apareceu todo asseado, limpo, olhou com cara de deboche para Gumercindo e pediu:
- Ei Pará, prepara alguma coisa p’ra mim comê.
- Espera um pôquim ai Natal, que já faço. – respondeu o cozinheiro que negou comida para Gumercindo.
- Mas se ele vai comê, por que eu...
- Por que tu é cearense e ele é meu conterrâneo. P’ra tu só janta.- respondeu com meio-sorriso.
Gumercindo arregalou os olhos, observou o sujeito que ia comer, olhou o cozinheiro enquanto preparava alguma refeição sentiu o cheiro da fritura e subitamente perdeu a fome e nem o jantar quis.
Na manhã seguinte, Gumercindo acordou cedo, logo que o cozinheiro responsável pelo café acordou os trabalhadores. Teve uma noite confortável, suas costas estavam bem descansadas naquele colchão de espuma. Acostumado a dormir nas praças, a cama do alojamento era o melhor que lembrava ter.
Levantou-se com os outros, seguiu os passos do cozinheiro até a cozinha, onde havia um simples refeitório e lhe foi servido café e pão com manteiga. Seu estômago agradeceu, a fome voltou de forma terrível, deu vontade de comer outro pão, então foi pedir ao cozinheiro.
- Ei, me arruma outro pão.
- Acabou. – respondeu com ironia no tom da voz. – Agora só o almoço ao meio-dia.- continuou o cozinheiro com raiva.
Acostumado com a hostilidade das pessoas, Gumercindo não se importou com a crueldade do cozinheiro que se realmente quisesse ajudá-lo poderia lhe dar outro pão que havia sobrado e que não lhe faria falta. Porém mesmo não se importando com a reação do cozinheiro, seu estômago o torturava e queria mais comida. Sentia uma dor inconsolável como uma força que o consumia e houvesse uma onça ali dentro e começando a bramar:
- Ohaaaarrrr! Ohaaaarrrr.
- Era o barulho que ouvia e sentia, arregalou os olhos novamente, fez uma cara de assustado e pálido apoiou-se num pilar do refeitório, colocou uma das mãos sobre a barriga e tentou controlar a fera que tinha ali, faminta e selvagem.
- Ohaaaarrrr! Ohaaaarrrr... – Era o barulho no seu estômago, os trabalhadores ainda atentos com suas refeições não perceberam o suplício de Gumercindo, então ele ao observá-los, lembrou-se do dia anterior, da zombaria e entre uma risada ou outra, sentia a mesma sensação que teve ao ser zombado. Sensação que somada com a crueldade do cozinheiro ao recusar-lhe o almoço no dia anterior, acabou lhe tirando a fome, ficando sem almoço e jantar naquele dia.
Então decidiu que o único jeito de controlar a “onça” de dentro da sua barriga, era ser motivo de chacota. Caminhou com dificuldade até a mesa do refeitório e entre um passo e outro a “onça” bramia:
- Ohaaaarrrr, Ohaaaarrrr.
Ao encontrar com os homens pediu:
- Ei, fa-falem comigo daquele jeito.
- O quê? – Estranhou um dos sujeitos. Súbito porém um dos trabalhadores o zombou:
- Olha lá o cara da pombinha. AH, AH, AH.
A zombaria foi geral arrancando gargalhadas de todos, enquanto a onça ainda bramia:
- Ohaaaarrrr, Ohaaaarrrr...
- Deixando Gumercindo sem jeito e se requebrando a cada ataque da fera da fome. Porém com as gargalhadas e zombaria, a onça foi se acalmando e os urros eram mais leves, logo miava, até que desapareceu, então Gumercindo começou a rir com os debochado- res.
Algumas horas depois e Gumercindo já estava na construção da mansão, o contratante explicou-lhe o serviço, recém-contratado, não conhecia ninguém. Os mais aproveitadores o escalavam para o serviço mais pesado.
O contratante o deixou ajudando o pedreiros e saiu, eram três sujeitos estranhos cearenses como Gumercindo, quando o receberam lhe impuseram as ordens:
- Tu pega o cimento e faz massa para nós três, vamos levantar essa parede ainda hoje. – disse apontando para um alicerce que pela altura apontada, teria ao menos três metros.
Fazendo o que ordenaram, Gumercindo pegou o pesado saco de cimento e começou a fazer massa para assentar os tijolos.
- Qual é o teu nome? – indagou o pedreiro.
- Gumercindo. – respondeu com os olhos arregalados.
- Então Gumercindo, aqui não pode faltar massa, mesmo que tu for fazer outro serviço, não pode deixar faltar, para nós trabalhar tá ouvindo. – Explicou o pedreiro com uma voz de autoridade. Gumercindo gostou daquele tom de voz e com um sinal de cabeça concordou e compreendeu a tarefa que tinha, logo começou a abastecer os três pedreiros com a massa, explicaram-lhe como devia fazê-la para ser melhor utilizada, e ele fazia como disseram.
Rápido e com muita energia, Gumercindo dava conta do serviço, logo os aproveitadores começavam a agir e seu nome era ouvido na obra inteira:
- Gumercindo, pega uns quatro tijolos p’ra mim. – E lá ia fazer o que pediam, então outro espertalhão ao ouvir o pedido, fazia o mesmo para zomba-lo e vê-lo obedecer:
- Gumercindo, pega uns dois sacos de cimento para mim.
- Ei Gumercindo, está acabando a massa. – Gritou um dos três pedreiros que ele servia.
- Já estou indo. – respondeu atarefado nos inúmeros pedidos.
Então seu nome começou a se tornar palavra obrigatória na boca dos trabalhadores.
Aos poucos, até os serventes lhe davam ordens enquanto descansavam zombando e Gumercindo ingênuo e dinâmico, fazia o que pediam sem reclamar:
- Ei Gumercindo faz aquilo que te pedi.
- Gumercindo, vai logo.
- Gumercindo, Gumercindo...
Quando o contratante chegou, um silêncio seguiu, então indagou:
- O que está acontecendo aqui? Virou feira? – bradou o homem que até então parecia ser calmo, para Gumercindo.
- Gumercindo, o que está acontecendo?
Derramando suor pelo rosto inteiro, arregalou os olhos e respondeu:

- Tô trabalhano .
- Estou vendo, e trabalhando até demais. – continuou o contratante olhando para os demais.
- Não quero saber de patifaria aqui.- continuou. – Cada qual que faça o seu serviço. O Gumercindo faz o dele e vocês o deixem trabalhar.
Os trabalhadores em silêncio e envergonhados, disfarçavam e aos poucos voltavam ao trabalho. Gumercindo continuou a ajudar os três pedreiros e assim foi até a hora do almoço.

domingo, 17 de agosto de 2008

Romance de RICARDO CUNHA - GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO E QUIPROQUÓS CAPITULO VI


Ainda engasgado, tossia, engolindo poeira a cada tosse, com os olhos cheio de lágrimas, viu ao longe o pau-de-arara partir e o deixar no meio da estrada, num lugar onde desconhecia, ralou os braços e doía sua perna esquerda, começou a caminhar, a caminhar e após dois dias e uma noite caminhando, pedindo e sofrendo, chegou a São Paulo.

* *
A cidade se apresentava para Gumercindo, quando aos passos adentrava naquela monstruosa São Paulo. Sentiu um calafrio e uma enorme vontade de voltar para o norte, ainda não acreditava que conseguira chegar.
Sofreu muito durante a caminhada, sua sorte é que mesmo sendo despejado durante a viagem, o pau-de-arara lhe poupou inúmeros quilômetros. Ainda pensava no fato e ingênuo, sentia que seria fácil encontrar o contratante naquela enorme cidade.
Caminhou pelos edifícios os observando até o alto, estranhava as antenas que ficavam em cima, as janelas refletiam o céu e alguns sujeitos se equilibravam feito crianças chamando sua atenção. O barulho dos carros e gritos dos camelôs, assustavam-no assim como a indiferença com sua presença horrorizante; estava sujo, com sapatos furados e rasgados, sua barba cresceu durante a viagem, assim como seu cabelo que nunca fora penteado. Seu banho ou perfume fedia muito, era um mendigo naquelas avenidas que mesclavam pobreza escondida com riqueza ostentada.
A garoa caía e lhe fazia cócegas, adorou aquilo, olhou para o céu, depois fechou os olhos e deixou as gotas massagearem sua face.
Andando aproximou-se do rio Tietê, famoso por sua poluição, Gumercindo por sua vez identificou-se com o mau-cheiro, sentou-se as margens e descansou.
Continuou a caminhar pela cidade se encantando com o que via. Teve medo do atravessar as avenidas com seu trânsito rápido, cheio de carros apressados e motoristas irritados, observava as lojas cheias de presentes coloridos, com pessoas bonitas, ricas, que não o percebiam e quando o perceberam o olharam com repúdio, o que de certa forma o confortou, acostumado com essa forma de tratamento, sentia-se melhor ser tratado dessa maneira a não ser tratado de forma alguma.
Colou o rosto numa vidraça e assustou os vendedores, um segurança hostil veio em sua direção e com palavras que Gumercindo não entendia, exigiu que se retirasse dali.
Então saiu, mais assustado com a cara do segurança do que com suas palavras, perambulou pelas ruas antigas, viu casas velhas, postes de ferro com luminárias esquecidas, observava alguns cartazes estranhos com fotos de pessoas tristes amargura- das, como se aqueles cartazes fossem prisões e estivessem sendo obrigadas a mostrar seus rostos para todos que por ali passavam.
Gumercindo não sabia ler as palavras dos cartazes, mas sentia que o objetivo destes eram encontrar aquelas pessoas por que eram queridas ou odiadas.
Deixou os cartazes e continuou pela cidade com fome, pediu comida para um ambulante que vendia um cheiroso cachorro-quente. O vendedor o esnobou, então faminto, pediu para os clientes que o ignoravam tanto quanto o ambulante.
Uma das clientes porém, perdeu a fome com o fedor de Gumercindo, metida a rica e acostumada a coisas melhores como sua presença denunciava, a mulher pegou seu cachorro-quente faltando duas mordidas dadas por ela e o entregou à Gumercindo que mesmo feliz não agradeceu, nem sorriu e saiu devorando o lanche.
- Mal educado – resmungou a mulher com cara de azia, em seguida limpou as mãos e continuou seus afazeres.
Gumercindo sentia-se melhor após comer, sentou-se numa praça, observou os mendigos bêbados que dormiam, os achou preguiçosos dormirem durante o dia, pensava não ser boa coisa.
Encantado com a cidade, já se sentia como parte dela, era uma cidade que tinha muita riqueza realmente como diziam, acreditava que ali viveria bem e não teria dificuldades para comer.
Pensou em procurar o contratante, sem saber o nome do homem, enfim percebeu a dificuldade que seria, por um instante sentiu-se sozinho, levantou-se e voltou a caminhar sem rumo, suas pernas e pés doíam e mal suportava caminhar.
Parou num semáforo, achou bonito o desenho do homenzinho no farol vermelho, quando este tornou-se verde, espantou-se e logo os carros pararam para que os pedestres passassem e se preparou
para deixar a calçada quando ouviu uma voz lhe chamar bem alto:
- Ei Gumercindo!
Estranhou alguém lhe conhecer ali, procurou pela voz e observou aquele homem com bigode enorme, arfando, correndo em sua direção fazendo um enorme barulho com seu relógio de alumínio e pulseira frouxa. Seu rosto era conhecido para Gumercindo, mesmo numa cidade enorme e com possibilidades ínfimas de encontrar alguém conhecida, eis que se encontraram, era o contratante.
- Ufa, que bom, te encontrei! – sussurrou o homem cansado com a corrida.
- Eu tava te procurando. – comentou Gumercindo.
- Fiquei sabendo o que houve no pau-de-arara... Fi dumas éguas, aqueles caboclo que te jogaram na estrada, mas sabia que ia te encontrar pelas praças principais da cidade.
- Sabia? Como?
- É por onde a maioria do povo que vem do norte fica, não tá vendo esses mendigos? São em sua maioria Nordestinos que vieram e ainda não arrumaram emprego.
- E por que não arruma emprego para eles?
- Por que são vagabundos e cachaceiros.
O sinal mudou novamente e os carros voltaram a circular, Gumercindo voltou para a calçada e ficou feliz por encontrar o contratante, e mesmo cansado, perguntou sobre o trabalho:
- Começo a trabalhar hoje?
- Não, hoje tu descansa, mas amanhã mesmo tu já pega no batente. – respondeu o contratante e continuou: - Vamô simbora home, vou te levá para o alojamento e te dar o que comê, pelo jeito está com fome, já que me disseram tê-lo deixado longe daqui, tu veio a pé?
- Vim.
- Eu imaginei, levou uns dois dias?
- Acho que foi.
- Eh, Eh, caminhô hein home, mas agora tu está em São Paulo, e vai Ter aonde morar e o que comer, e vai trabalhar feliz.
O contratante cativava Gumercindo que já se sentia melhor com sua presença, então o acompanhou até um carro velho, onde o contratante o levaria ao alojamento. Durante o trajeto aproveitou para observar a cidade, novamente quieto e comportado, não falava e nem fazia perguntas, apenas observava as praças e jardins, achava tudo bonito, fabuloso, como uma das coisas mais lindas que já viu.
Adorava também o conforto do carro, sentia-se como se estivesse flutuando, era muito macio o banco, muito diferente do assoalho do pau-de-arara.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

domingo, 10 de agosto de 2008

GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO E QUIPROQUÓS - Romance de RICARDO CUNHA CAPÍTULO V


A viagem levaria três dias e três noites, Gumercindo jamais havia viajado numa distância dessas e nas primeiras horas de viagem sentiu desconforto nas costas, levantou-se, porém caiu no assoalho do pau-de-arara arrancando risos dos outros passageiros.
Ergueu-se novamente, mas decidiu se sentar na tábua do assoalho, onde sentiu conforto. O caminhão do pau-de-arara era forrado por uma lona cheia de remendos com costuras malfeitas que resistiam à chuva, mas esta era algo incomun por onde passava, a lona era segura por dois pilares de cada lado e um caibro de madeira que varava de fora-a-fora a carroceria do veículo, para os passageiros havia algumas ripas pregadas acima do assoalho, onde podiam se sentarem com maior proteção contra os solavancos. Gumercindo preferiu o assoalho pois podia descansar as pernas sem precisar dobrá-las.
Na cabina viajavam o motorista mais um ajudante, cuja principal obrigação era conversar para que o sono ou tédio não tirasse a atenção do condutor.
Para Gumercindo e os outros passageiros, a estrada era pouco visível, tinha que esticar o pescoço e erguer parte da lona que cobria a entrada-saída do pau-de-arara.
Gumercindo curioso, exercitou-se para ver as paisagens, se ergueu próximo a entrada-saída enroscou a cabeça onde podia ver sem incomodar os outros passageiros com sol ou poeira, então conseguiu uma brecha com vista para fora.
Estava satisfeito com o que via; cabras, montanhas, crianças acenando, nem a poeira da passagem incomodava seus olhos.
O sol clareava as poucas árvores próximo à estrada trazendo uma linda cor nas folhas. Gumercindo prestava atenção nas plantas secas que por falta de água perderam a vida, havia os barracos das vilas por onde passavam, com pessoas tristes, velhas e acabadas. Gumercindo se perguntou por que não faziam como ele tentar a sorte num lugar melhor ao invés de ficar ali sofrendo sem água, sem comida, a vida inteira. Mesmo sabendo que havia uma cidade onde teriam o que precisassem.
Achava estranho, mas imaginou que tivessem medo, ou não tinham dinheiro para pagar o pau-de-arara e ninguém apareceu para ajudá-los, ou talvez gostassem daquela vida e estavam satisfeitos ou conformados com a própria desgraça.
*

No primeiro dia de viagem, Gumercindo observava as paisagens sem piscar, na hora do almoço sem dinheiro e sem comida, pediu um pedaço de tapioca e um gole d’água para um dos passageiros, o sujeito aparentemente com quarenta anos de idade e com muitas rugas ao lado da barba rala, fez cara de mau-gosto, mas compreendeu a situação do pedinte e deu-lhe o que pediu.
A tapioca, um alimento feito à base de polvilho e coco, reunia nutrientes para aqueles homens de vida difícil. Nas suas raras refeições, nada melhor do que utilizar a riqueza dos alimentos que conseguiam.
Para acompanhar tomavam caldo-de-cana; a garapa, o açúcar fortalecia e dava ânimo, então muitos além de bebe-lo o usava para fazer guloseimas, entre as mais conhecidas preferiam a rapadura, e era carregada pelos retirantes, com pouca quantidade apanharam uma barra enorme e a dividiram, fazendo a festa dos pequenos e dos grandes, incluindo Gumercindo que novamente pediu um pedaço.
Dessa vez o dono da rapadura dividiu sem pestanejar, com cara de homem bom, sentou-se com sua mochila ao lado de seus três filhos e a mulher abriu um guardanapo, esticou e serviu a quem se interessava.
O caminhão não esperava muito tempo para as refeições, cada um sabia disso, era apenas tempo de comer, descer, se aliviar e se sentar novamente para prosseguir a viagem.
Gumercindo sentia-se feliz por conhecer pessoas novas, tentou dialogar com o homem bom que dividiu a rapadura, este não pôde dar-lhe atenção pois seu filho menor se assustou com sua presença e chorou, eis que o homem solidário o acolheu no braço e o acalmou.
Então Gumercindo voltou para sua brecha no fundo do caminhão, e ficou olhando as paisagens, até anoitecer.
Não pensou sequer em como seria sua nova vida em São Paulo com o contratante. Seu trabalho de peão de obra era um serviço comum, porém Gumercindo mal sabia como era o dia de trabalho desse trabalhador.
Ele que sempre deixou se levar pelos impulsos, comia quando pedia ou ganhava algum trocado, ou o que podia e lhe davam, esta era uma grande aventura. Estava surpreso naquele momento com a beleza das paisagens, cortavam o sertão e já deixavam aquela miséria para trás, os homens nos barracos já eram escassos, via apenas árvores e cerrado enquanto escurecia e começou a ver muitas estrelas no céu, então cochilou próximo a brecha.
Nos outros dias de viagem, o ânimo de Gumercindo já não era o mesmo; exausto e com o corpo doendo se aborrecia com as paisagens ou quando algum outro passageiro o olhava com cara feia.
Na hora das refeições seguia o mesmo ritual de pedir para comer, ás vezes de forma amistosa, dessa vez não se importou com sua ação. Um passageiro abriu a marmita com escassos pedaços de tapioca que mal davam até o fim da viagem, esfomeado, Gumercindo se aproximou e apanhou um grande pedaço, eis que o homem irritou-se:
- Que tu tá pensando?
Gumercindo o olhou com a boca cheia de polvilho e nada respondeu, o homem continuou:
- Tu é folgado, serrou minha comida a viagem toda e ainda por cima meteu a mão sem pedir autorização.
- Este sujeito é folgado, precisa de uma lição. – comentou outro passageiro, também aborrecido com a investida de Gumercindo.
- Não sou folgado, tô com fome, só isso.- respondeu com tom ingênuo, mas para aqueles homens acostumados com rixas e maldade, soou como atrevimento.
Então o dono da marmita levantou-se irado, deixando o resto da tapioca no assoalho do pau-de-arara, agarrou Gumercindo que ainda comia o pedaço furtado e se engasgou, o outro passageiro, cúmplice no aborrecimento, apoiou o ato e então juntos esbofetearam Gumercindo e aos olhares covardes dos outros retirantes o jogaram para fora do pau-de-arara, se aprofundando com a queda na poeira da estrada.
O motorista não percebeu e continuou a viagem, Gumercindo se machucou com o tombo e assustado tentava compreender como aconteceu o fato.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

sábado, 2 de agosto de 2008

GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO E QUIPROQUÓS - ROMANCE DE RICARDO CUNHA - CAPÍTULO IV

A viagem levaria três dias e três noites, Gumercindo jamais havia viajado numa distância dessas e nas primeiras horas de viagem sentiu desconforto nas costas, levantou-se, porém caiu no assoalho do pau-de-arara arrancando risos dos outros passageiros.
Ergueu-se novamente, mas decidiu se sentar na tábua do assoalho, onde sentiu conforto. O caminhão do pau-de-arara era forrado por uma lona cheia de remendos com costuras malfeitas que resistiam à chuva, mas esta era algo incomun por onde passava, a lona era segura por dois pilares de cada lado e um caibro de madeira que varava de fora-a-fora a carroceria do veículo, para os passageiros havia algumas ripas pregadas acima do assoalho, onde podiam se sentarem com maior proteção contra os solavancos. Gumercindo preferiu o assoalho pois podia descansar as pernas sem precisar dobrá-las.
Na cabina viajavam o motorista mais um ajudante, cuja principal obrigação era conversar para que o sono ou tédio não tirasse a atenção do condutor.
Para Gumercindo e os outros passageiros, a estrada era pouco visível, tinha que esticar o pescoço e erguer parte da lona que cobria a entrada-saída do pau-de-arara.
Gumercindo curioso, exercitou-se para ver as paisagens, se ergueu próximo a entrada-saída enroscou a cabeça onde podia ver sem incomodar os outros passageiros com sol ou poeira, então conseguiu uma brecha com vista para fora.
Estava satisfeito com o que via; cabras, montanhas, crianças acenando, nem a poeira da passagem incomodava seus olhos.
O sol clareava as poucas árvores próximo à estrada trazendo uma linda cor nas folhas. Gumercindo prestava atenção nas plantas secas que por falta de água perderam a vida, havia os barracos das vilas por onde passavam, com pessoas tristes, velhas e acabadas. Gumercindo se perguntou por que não faziam como ele tentar a sorte num lugar melhor ao invés de ficar ali sofrendo sem água, sem comida, a vida inteira. Mesmo sabendo que havia uma cidade onde teriam o que precisassem.
Achava estranho, mas imaginou que tivessem medo, ou não tinham dinheiro para pagar o pau-de-arara e ninguém apareceu para ajudá-los, ou talvez gostassem daquela vida e estavam satisfeitos ou conformados com a própria desgraça.

No primeiro dia de viagem, Gumercindo observava as paisagens sem piscar, na hora do almoço sem dinheiro e sem comida, pediu um pedaço de tapioca e um gole d’água para um dos passageiros, o sujeito aparentemente com quarenta anos de idade e com muitas rugas ao lado da barba rala, fez cara de mau-gosto, mas compreendeu a situação do pedinte e deu-lhe o que pediu.
A tapioca, um alimento feito à base de polvilho e coco, reunia nutrientes para aqueles homens de vida difícil. Nas suas raras refeições, nada melhor do que utilizar a riqueza dos alimentos que conseguiam.
Para acompanhar tomavam caldo-de-cana; a garapa, o açúcar fortalecia e dava ânimo, então muitos além de bebe-lo o usava para fazer guloseimas, entre as mais conhecidas preferiam a rapadura, e era carregada pelos retirantes, com pouca quantidade apanharam uma barra enorme e a dividiram, fazendo a festa dos pequenos e dos grandes, incluindo Gumercindo que novamente pediu um pedaço.
Dessa vez o dono da rapadura dividiu sem pestanejar, com cara de homem bom, sentou-se com sua mochila ao lado de seus três filhos e a mulher abriu um guardanapo, esticou e serviu a quem se interessava.
O caminhão não esperava muito tempo para as refeições, cada um sabia disso, era apenas tempo de comer, descer, se aliviar e se sentar novamente para prosseguir a viagem.
Gumercindo sentia-se feliz por conhecer pessoas novas, tentou dialogar com o homem bom que dividiu a rapadura, este não pôde dar-lhe atenção pois seu filho menor se assustou com sua presença e chorou, eis que o homem solidário o acolheu no braço e o acalmou.
Então Gumercindo voltou para sua brecha no fundo do caminhão, e ficou olhando as paisagens, até anoitecer.
Não pensou sequer em como seria sua nova vida em São Paulo com o contratante. Seu trabalho de peão de obra era um serviço comum, porém Gumercindo mal sabia como era o dia de trabalho desse trabalhador.
Ele que sempre deixou se levar pelos impulsos, comia quando pedia ou ganhava algum trocado, ou o que podia e lhe davam, esta era uma grande aventura. Estava surpreso naquele momento com a beleza das paisagens, cortavam o sertão e já deixavam aquela miséria para trás, os homens nos barracos já eram escassos, via apenas árvores e cerrado enquanto escurecia e começou a ver muitas estrelas no céu, então cochilou próximo a brecha.
Nos outros dias de viagem, o ânimo de Gumercindo já não era o mesmo; exausto e com o corpo doendo se aborrecia com as paisagens ou quando algum outro passageiro o olhava com cara feia.
Na hora das refeições seguia o mesmo ritual de pedir para comer, ás vezes de forma amistosa, dessa vez não se importou com sua ação. Um passageiro abriu a marmita com escassos pedaços de tapioca que mal davam até o fim da viagem, esfomeado, Gumercindo se aproximou e apanhou um grande pedaço, eis que o homem irritou-se:
- Que tu tá pensando?
Gumercindo o olhou com a boca cheia de polvilho e nada respondeu, o homem continuou:
- Tu é folgado, serrou minha comida a viagem toda e ainda por cima meteu a mão sem pedir autorização.
- Este sujeito é folgado, precisa de uma lição. – comentou outro passageiro, também aborrecido com a investida de Gumercindo.
- Não sou folgado, tô com fome, só isso.- respondeu com tom ingênuo, mas para aqueles homens acostumados com rixas e maldade, soou como atrevimento.
Então o dono da marmita levantou-se irado, deixando o resto da tapioca no assoalho do pau-de-arara, agarrou Gumercindo que ainda comia o pedaço furtado e se engasgou, o outro passageiro, cúmplice no aborrecimento, apoiou o ato e então juntos esbofetearam Gumercindo e aos olhares covardes dos outros retirantes o jogaram para fora do pau-de-arara, se aprofundando com a queda na poeira da estrada.
O motorista não percebeu e continuou a viagem, Gumercindo se machucou com o tombo e assustado tentava compreender como aconteceu o fato.
Ainda engasgado, tossia, engolindo poeira a cada tosse, com os olhos cheio de lágrimas, viu ao longe o pau-de-arara partir e o deixar no meio da estrada, num lugar onde desconhecia, ralou os braços e doía sua perna esquerda, começou a caminhar, a caminhar e após dois dias e uma noite caminhando, pedindo e sofrendo, chegou a São Paulo.