sábado, 27 de setembro de 2008

GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO & QUIPROQUÓS CAPÍTULO XII




Os homens que acabaram indo naquele lugar como ele, disfarçavam e vasculhavam o lixo. Incomodados, abaixaram a cabeça e ficaram em silêncio enquanto Gumercindo se afastava.
Ele não sentiu ódio dos homens, nem mesmo rancor ou pena, apenas achou estranho que numa cidade enorme, acabassem se cruzando por ali. Decidiu esquecer o assunto, era passado e isso não o interessava.
Levou o saco cheio de sucata até a cooperativa e novamente ao chegar encontrou o sujeito da balança. Dessa vez, estava atendendo a um telefonema, fez sinal para Gumercindo esperar, após alguns minutos abriu o portão seguido por seus vários cães mansos, mas que latiam sem parar.
Ao ver o enorme saco nas costas de Gumercindo o indagou:
- Então, trouxe coisa boa?
- Acho que sim. – respondeu com cansaço pelo peso nas costas.
Levou meio corcunda o pesado saco até a balança e ao despejar o sujeito ficou feliz com o que viu novamente:
- Outras chapas de bronze! Você é um homem de sorte.
- Senhor acha?
- Isso é difícil achar, ninguém tentou te tomar?
Gumercindo pensou um pouco, lembrou dos dois homens que no fundo o observavam por outro assunto e desconversou:
- Não, eles estavam procurando comida e não ferro.
- Ah, Ah, Ah. – gargalhou o sujeito da balança e continuou com alegria na fala. – Você é uma figura, qual é seu nome?
- Gumercindo.
- É Gumercindo a vida é dura e se for mole cê não dura não. Mas faça o seguinte; está vendo aquele carrinho lá? – apontou o sujeito para um carrinho velho, feito de casco de geladeira, uma lataria improvisada com dois pneus bons que serviam com muita utilidade para carregar sucata.
- Estou. – respondeu Gumercindo.
- Então eu te dou ele em troca dessas chapas de bronze, você aceita? É melhor que carregar peso nas costas.
Gumercindo viu o carro de geladeira, pensou, pensou e comentou:
- Mas é que eu preciso almoçá , tô com fome então preciso de uns trocados.
- Bem, já sei cê quer tomar umas cachaça não é mesmo? – Perguntou o sujeito da balança com bom humor.
- Não eu não gosto de bebida.
- Me engana. – desafiou o homem e sugeriu: - Façamos o seguinte, eu te pago um marmitex e te dou o carrinho em troca dessa sucata, feito?
- Marmitex?
- É uma marmita cheia de comida boa.
- Então aceito, se me der comida e o carrinho, aceito sim.
- Beleza, agora mesmo vou ligar para trazerem nosso almoço, vou pedir uma para mim também.
O sujeito da balança foi ao telefone e fez o pedido em pouco tempo, um motociclista trazia a encomenda. Gumercindo estranhou a embalagem laminada do marmitex.



A segurou e sentou-se num canto da Cooperativa junto à sacola do marmitex, encontrou uma colher e um garfo de plástico, utilizou a colher, achou excelente o cardápio, forrado de carne e legumes.
Em poucas colheradas cheias, Gumercindo comeu a marmitex, lambeu a embalagem cortou um pedaço do lábio, onde saía gotas de sangue. O sujeito da balança fazia sua refeição numa mesa de seu escritório improvisado no centro da Cooperativa e evitava falar nos intervalos de cada colherada.
Gumercindo descansou em silêncio e sentia-se melhor, aos poucos as histórias a respeito de São Paulo que ouvia no Ceará se concretizavam.
A cidade que tinha fartura, trabalho, muitos trocados para receber, acabou descobrindo no lixo. Ali sentiu que conseguiria sobreviver e se continuasse com aquela sorte, imaginava que poderia conseguir um local para morar, deixando para trás seu canto embaixo da ponte.
Após o almoço levantou-se, caminhou até ao carrinho que agora lhe pertencia e orgulhoso saiu á procura de mais sucata.
Refez o já conhecido trajeto da Cooperativa ao lixão e já sem a ajuda dos urubus chegou ao local de seu garimpo.
Quando chegou com seu carrinho de geladeira, os outros catadores cresceram os olhos, atentos invejavam Gumercindo vasculhando o lixo. Achavam estranho ele haver conseguido um carrinho de geladeira em pouco tempo.
Estava alegre e não conseguia disfarçar sua alegria, ao procurar sucata, encontrou papelão e fios de cobre, plásticos com bom valor de venda na Cooperativa e encheu o carrinho voltando para vendê-los.

Ganhou alguns trocados, era tarde, pediu ao sujeito da balança outro marmitex, deixou o carrinho de geladeira na cooperativa e foi embora com seu jantar para uma noite de descanso embaixo da ponte.
Nos dias que se seguiram, Gumercindo continuou com sua coleta, às vezes trazia sucatas de valor outras vezes o que trazia era suficiente apenas para o almoço.
O sujeito da balança lhe oferecia banho todo dia em troca de algumas sucatas e aos poucos também lhe dava roupas limpas que não serviam para seu uso. A onça de seu estômago andava sumida naqueles dias, com vontade e disposição, fazia três coletas por dia e já era figura conhecida neste trajeto. Logo era conhecido e muitas pessoas já o chamavam pelo nome, seus trocados que sobravam, juntava e o guardava na cintura o transportando para onde ia.
Não pretendia gastar com qualquer coisa e pensava em comprar um local para morar, ou um colchão, pois mesmo acostumado com as noites embaixo da ponte, ainda sentia saudades da cama do aloja- mento. Seus ganhos aumentaram a cada coleta de sucata e sentia a cada dia os trocados aumentarem em sua cintura.
No lição os catadores evitavam conversar enquanto vasculhavam o lixo, mas durante um intervalo na coleta, dois catadores conversa- vam chamando a atenção de Gumercindo que se interessou pelo assunto da conversa:
- Então tu quer vender seu barraco? – perguntou um dos catadores ao outro.
- Tô vendendo. – respondeu o outro catador.
- Porque home?
- Tô cansado dessa cidade, de sofrê aqui... passá fome, vô vendê e voltá pro norte.
Gumercindo atento arregalou os olhos, coçou a cabeça com o
boné enterrado, deixou uma garrafa de plástico que acabara de apanhar num carrinho de geladeira e indagou o catador que falava:
- Tu quer vender um barraco é isso?
O catador espantado e levemente irritado com a indiscrição de Gumercindo ao ouvir sua conversa reservada com o outro catador, virou a cabeça observou Gumercindo e respondeu:
- Tô sim... quer comprá?
- Quanto é?
- Quinhentos real.
- Fica perto daqui?
- Fica, na favela... – Apontou o homem para a favela próximo ao lixão.
- Eu quero vê o barraco. – disse Gumercindo ainda com os olhos arregalados. O catador olhou para o outro que fez um sinal de interesse com a sobrancelha, então decidiu:
- Vamos até lá.
Gumercindo coçou sua barba que já havia crescido o suficiente para espichar e espichada de maneira assustadora como se aumentasse o tamanho do seu queixo, Gumercindo saiu pelas ruas da favela com seu carrinho de geladeira com pouca sucata e o empurrava com orgulho.
Chegou ao barraco do sujeito, eram dois cômodos e um banheiro, feitos de sobras de madeira e pedaços de plástico, ali viviam ele e Três filhos, além da mulher que preparava no quintal o que seria o almoço, usando latas de óleo vazias que improvisadas serviam de panela.
- é esse aqui o barraco, gostou?
Gumercindo olhou para as paredes improvisadas do barraco, para a vizinhança de barracos parecidos, outros diferentes, alguns feitos de tijolos. Estranhou o enorme morro bem em frente ao barraco, que ficava no seu começo embaixo de muitos lares.
Logo desviou sua atenção para as crianças, curioso viu o que sua mãe preparava e novamente o catador dono do barraco insistiu numa resposta interrompendo sua análise e seus pensamentos.
- Cumé gostou do barraco?
- Gostei, vô comprá.
- O dono do barraco espantou-se com a decisão de Gumercindo, e se perguntou se aquele sujeito esquisito, teria mesmo o dinheiro para pagar-lhe pelo barraco.
Gumercindo sem dizer nenhuma palavra, tirou da cintura um saco plástico de lá saiu um pacote cheio de notas de todos os valores. O dono do barraco boquiaberto ajudou a contar o dinheiro a pedido de Gumercindo, ao todo a soma era de mil e duzentos reais, bem guardados com muito suor.
- Esse dinheiro dá ? – Questionou Gumercindo com ingenuidade, não conhecia dinheiro, juntou para conseguir comprar um canto, um barraco, mas não sabia fazer contas e nem entendia de valor algum, imaginou que seu dinheiro era suficiente para a compra pela quantidade de coletas que fizera para arrecadá-lo e pelo tamanho do pacote de notas. Não confiou em perguntar para o sujeito da balança quanto tinha, temia que o roubasse, mas no dono do barraco confiou e sentiu pena por suas crianças, novamente olhou para as panelas de lata de óleo na fogueira e viu apenas água e fubá.

Acompanhe o livro Gumercindo: mandinga, pé-de-pato & quiproquós cada semana um novo capítulo

domingo, 21 de setembro de 2008

GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO & QUIPROQUÓS CAPÍTULO XI - ROMANCE DE RICARDO CUNHA


Desceram do prédio e Gumercindo se apressou em procurar o lixão. Caminhou pela cidade e observava vez por outra o céu, para seguir os urubus e encontrar com facilidade o lixão.
Andou bastante para chegar ao lixão, ao aproximar-se, via muitos caminhões de lixo que passavam lotados e voltavam vazios. O cheiro era parecido com o seu, há meses não tomava banho.
Chegou ao lixão e se apaixonou pelo local, várias pessoas vasculhavam as montanhas de lixo em busca de comida e sucata. Gumercindo sabendo que valia dinheiro, sentiu uma enorme fartura naquele local.
Com tanto lixo, tanta sucata não precisava pedir comida, ganharia o suficiente para se manter. Os urubus que viu no céu, pousavam próximo das pessoas e se afastavam com algum movimento involuntário dos catadores que os assustavam.
O espaço do lixão era enorme, cabia ali três ou quatro campos de futebol. O lixo jogado era pulverizado e aterrado num espaço preparado recebê-lo, de um modo desleixado e negligente.

As pessoas se aprofundavam nas montanhas de lixo e ali apanhavam o que podiam. Homens, mulheres, velhos e crianças, alguns famintos, comiam o que achavam:
Enlatados vencidos, carne podre de porco, de gado, de aves e até de gente. Era normal ver algum rato correr entre o entulho, sendo motivo de susto para os catadores.
Os urubus esperavam a análise e o aval de seu líder para atacar a carniça que encontravam e comê-la. Remexiam à procura do que mais queriam, e eram aceitos como verdadeiros donos daquele local.
Ali comiam, se encontravam e faziam seus ninhos, ao nascer os filhotes os deixavam à deriva e estes logo precisavam se enturmar ou custaria a própria vida, sua individualidade.
Os filhotes vomitavam quando viam gente, ou por desprezo ou nojo. Vomitavam a carniça que seus pais lhe deram e guardaram.
Vomitavam uma carniça podre que lhe foi dada e saia como necessidade fétida, horrorosa para qualquer humano.
Gumercindo descuidou-se ao caminhar pelo lixão e quase pisou num ninho de urubus com quatro ovos e três filhotes. Ao observá-lo os urubus abaixaram a cabeça e estranhamente não vomitaram como de costume e manifestavam como se sentissem seguros com sua presença.
Afastou-se do ninho e continuou a observar as montanhas de lixo disputadas com ansiedade pelos catadores. Então tentou contatos com as pessoas que não lhe deram atenção e continuava a busca apressadamente.
Gumercindo decidiu procurar sucata como faziam, apanhou alguns papelões enormes, um destes foi dividido por uma mulher que o puxou com força, o arrancando de suas mãos.
Procurou por outras sucatas, apanhou o que pôde, conseguiu uma enorme sacola, encheu com o que arrecadou e apressadamente levou para a cooperativa, seguindo o enorme trajeto que fizera novamente.
Ao chegar na cooperativa, foi atendido novamente pelo sujeito da balança, que pesava uma remessa de plástico prensado.
- Ah vejo que já conseguiu sucata. – comentou o sujeito da balança.
- Sim, consegui. – Respondeu Gumercindo, então levou a sacola que carregava nas costas e jogou o que continha no chão.
- O que é isso? – impressionou-se o sujeito da balança: - Isso não vale nada, é só lixo, aí só tem enlatado, resto de comida e argh, carniça... Tira isso daqui. –irritou-se o homem, então Gumercindo juntou novamente o lixo que arrecadou, colocou na sacola que tinha e voltou ao lixão para devolvê-lo. Caminhou novamente, ao chegar apanhou o que pôde de papelão e ferro, lotou um enorme saco e já era noite quando retornou o longo caminho de volta à cooperativa.
Chegou e o sujeito da balança não estava mais ali, ao ser chamado por Gumercindo, o sujeito apareceu na janela do velho prédio e de lá gritou:
- Por hoje chega, agora só amanhã vou voltar a funcionar.
- Mas eu trouxe papelão e ferro dessa vez.
- Eu já tomei banho, coisa que pelo seu fedor você desconhece, não vou mais mexer com lixo hoje não.
- É que eu tô com fome, não comi nada hoje.
- Se vira parceiro, amanhã eu abro cedo. Boa noite. – despediu-se o sujeito da balança ao afastar-se da janela.
Logo as luzes do velho prédio da cooperativa se apagaram. Triste, Gumercindo seguiu para seu reduto embaixo da ponte.
Muito cansado, desabou num canto limpo quando chegou, e dormiu profundamente esquecendo da fome, do cansaço e da tristeza com o trabalho perdido daquela tarde.
Naquela noite, Gumercindo não sonhou e a sucata que arrecadou, serviu de travesseiro. O zum-zum dos carros não incomodaram seu pesado sono e permaneceram até ao amanhecer, quando o sono o abandonou e ele voltou a ouvi-los.
Zum, Zum, Roooommmmm ...
Soava bem alto na estreita ponte. Gumercindo abriu seus olhos e um frio na barriga anunciou que a onça de seu estômago começava a despertar.
No dia anterior não almoçou nem jantou, então temendo a angústia da fome somada a fúria da onça. Gumercindo levantou-se, apanhou o saco cheio de sucata e rumou em direção a Cooperativa.
Levou algum tempo para concluir o trajeto, ao chegar, avistou o sujeito da balança já trabalhando, pesando fardos de sucata.
Ao avistá-lo o sujeito da balança abriu o portão e Gumercindo adentrou feliz com o saco nas costas.

O sujeito da balança fez cara-feia ao sentir o fedor de Gumercindo e com ar repulsivo o questionou:
- Isso é sucata mesmo?
- Agora é, trouxe papelão e ferro.
- Então me mostre.
Fazendo o que o sujeito da balança pediu, Gumercindo apressou-se em mostrar a sucata que tinha no saco, virou de boca para baixo e despejou o seu conteúdo. Como dissera havia ali papelão e alguns pedaços de ferro que trouxera, o sujeito da balança se espantou.
- Ora essa, você é um cara de sorte.
- Por que?
- Essas chapas são de bronze, dão um bom dinheiro.
Gumercindo arregalou os olhos e abriu um sorriso, o homem pesou o bronze e lhe propôs um negócio:
- Vamos fazer o seguinte, você toma um banho no meu banheiro, te dou café com pão, algumas roupas velhas que tenho ali em troca dessas chapas de bronze.
Gumercindo gostou da proposta e sem pestanejar aceitou. O sujeito da balança realmente ganharia um bom dinheiro com aquelas chapas de bronze, então fizera um bom negócio.
Satisfeito mostrou o banheiro que havia o chuveiro e apressou em trazer algumas roupas velhas, porém limpas.
O banho durou mais de uma hora, sendo interrompido pelo sujeito da balança, aborrecido com a demora, Gumercindo sentia-se renovado, vigoroso com sua limpeza. Vestiu as roupas que ficaram largas, mas que serviu em seu corpo magro.
Junto com as roupas havia um boné com a marca da cooperativa estampada, o colocou na cabeça com seus cabelos crespos e espichados que nem lembrava quando cortou ou mesmo se o fez alguma vez.
A “onça” começava a bramir em sua barriga, então apressou o sujeito da balança:
- E o café com pão que o senhor ia me dar?
- Já vou lhe trazer. – respondeu o sujeito da balança, deixando o trabalho de lado e indo apanhar o que foi prometido.
Quando trouxe, Gumercindo fez festa, além do café, o sujeito da balança lhe trouxe pão, queijo e duas frutas: Uma banana e um ma- mão. Devorou o queijo primeiro entre goladas de café, em seguida o pão foi a vítima da “onça” e ao devorar as frutas ela já adormecia.
- E agora vou lá no lixão pegar mais.
- Beleza, isso mesmo, traz mais papelão e ferro, o que der para você trazer de valor eu compro.
Animado com as palavras do sujeito da balança e sentindo-se melhor com o trato que recebeu, Gumercindo apressou-se em buscar mais sucatas.
Encontrou as mesmas pessoas que viu no dia anterior e novamente elas o trataram com indiferença. Uma das crianças ao percebê-lo comentou com sua mãe:
- Mãe, ó aquele home feio de novo.
Gumercindo estranhou a atenção da menina e a desatenção da mãe para com a filha que continuava a revirar as montanhas de lixo em busca de entulho.
Então novamente viu um ninho de urubus, que abaixaram a cabeça ao percebê-lo. Um outro catador aproximou-se próximo do ninho para revirar o lixo, quando um dos filhotes vomitou enojando o homem.
Gumercindo então surpreso se afastou e começou sua busca. Novamente encontrou placas de ferro e bastante papelão, durante a procura arranjou outro enorme saco de estopa que estava pela metade com trigo.
Jogou o conteúdo no entulho, e colocou o que arrecadou dentro, nesse intervalo sentiu-se observado por dois homens, tal observação o incomodava. Então irritado levantou a cabeça e os fitou, eis que os homens eram os que o jogaram do pau-de-arara.
Espantados com a presença de Gumercindo e constrangidos, desviaram o olhar. Surpreso mas não envergonhado como os dois sujeitos, Gumercindo ergueu o saco e o colocou nas costas sem tirar os olhos deles.

domingo, 14 de setembro de 2008

GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO & QUIPROQUÓS - CAPÍTULO X Romance de RICARDO CUNHA



Ali deitou-se e descansou as pernas que doíam por tantas caminha –das. Ao ficar descansado, sorriu e sentiu-se aliviado.
Portanto precisava se ajeitar, conseguir comida para jantar e se possível até mesmo algo confortável para se deitar durante a noite.
Saiu quando já era tarde, então perambulou à procura de comida, temendo a volta da onça com sua fúria. Se apressava em encontrar o que comer, sentiu derrepente um cheiro agradável que atiçou seu paladar, procurou pelo cheiro que vinha de uma esquina com ruas mortas, e lá novamente avistou uma multidão.
Aproximou-se receioso, assustado percebeu que os homens e mulheres ali presentes eram como ele; mal-vestidos e sujos , então se confortou e deixou a cautela.
A razão para aquela concentração, eram algumas pessoas com um enorme caldeirão, cheio de sopa, com um cheiro delicioso que exalava convidando os esfomeados. Distribuindo as refeições, um grupo de pessoas mal-humoradas que vestiam camisetas brancas e demonstravam fazer aquilo como uma obrigação.
Havia uma fila desordenada e os esfomeados apanhavam a sopa e um pedaço de pão e um copo de chá, servidos em copos e pratos descartáveis.
Gumercindo ficou feliz com o que viu, então foi até o local de entrega das refeições, um dos mendigos o olhou com cara feia e entrou em sua frente, ele hesitou. Porém continuou ali até receber sua refeição ao consegui-la devorou rapidamente e guardou o pão para o dia seguinte.
Voltou então para sua ponte e teve uma noite agradável, seus pesadelos.
Os dias que se seguiram foram de mesma forma, havia até mesmo uma certa rotina. Gumercindo acordava cedo, caminhava á procura de comida, pedia para algum transeunte ou comerciante.
Algumas vezes recebia sim, muitas vezes recebia não, mas sossegava apenas quando a “onça” do seu estômago saciava.
À noite procurava a sopa gratuita distribuída em alguns pontos da cidade, conhecia cada local que havia e não se preocupava em visitá-los duas ou três vezes durante a noite.
Assim foram dois anos e beirava os três. Gumercindo nunca sentiu-se incomodado embaixo da ponte, despreocupado acostumou-se com o chão duro e nem procurou se confortar com algo para deitar-se.
Gostava da cidade e se adaptou à ela, não pensava em voltar para o Ceará e acreditava que o melhor era viver daquela maneira.
Durante uma manhã de procura por comida, recebeu diversos nãos, e um convite para "trabalhar vagabundo", aquilo mexeu com sua cabeça. Á noite perdeu a fome, não conseguiu comer, e aquele "vai trabalhar vagabundo", com a força de suas palavras o incomodava e durante essa noite sem dormir, decidiu que precisava trabalhar, era um vagabundo, quando podia ser um trabalhador e gostava de trabalhar, sentiu saudade da obra e do alojamento, porém nem pensava em voltar, sentia medo da agressividade do cozinheiro e dos outros trabalhadores. Além de se envergonhar por ter abandonado o contratante.
Queria trabalhar para pagar sua comida, ter seus trocados, comer sem pedir e ficar livre, era tudo que queria, trabalhar para viver e não o contrário.
No outro dia procurava por emprego, caminhava, perguntava, mas mal-vestido, com a barba por fazer, sem tomar banho há muitos dias, dificilmente alguém o ajudaria. Então percebeu numa rua morta, um velho carregando papelões e sucata dentro de um carrinho de ferro, uma espécie de sucata transformado em puxador de carga.
Aproximou-se do velho e o indagou:
- O que tu vai fazer com esse lixo?
- Vou vender ora essa. – respondeu o velho sem dar atenção.
- E vende é?
- Claro, lá no ferro-velho.
- E onde fica o ferro-velho?
- Duas ruas para baixo daquela avenida.
Gumercindo gostou da idéia, apressado seguiu em direção ao ferro-velho para buscar informações sobre a venda do lixo que o velho lhe falou.
Chegando ao local, um prédio abandonado forrado de sucata, onde havia vários cachorros latindo e um sujeito que pesava com o auxílio de uma balança, um enorme fardo de papelão. Gumercindo aproximou-se e perguntou para o homem:
- Aqui é o ferro-velho?
O homem um gordo de óculos com lentes e armação grossas, olhar míope, sujo da cabeça aos pés, disfarçava a careca com um boné personalizado com a marca de uma cooperativa estampado logo na frente. Observou Gumercindo ao responder:
- O que cê acha?
- Acho que é.- retrucou Gumercindo.
- Então... O que quer?
- Quero vender papelão lixo...
- Aqui a gente só compra, não contrata ninguém. – interrompeu o sujeito da balança.
- E quanto paga ?
- O sujeito sorriu, olhou para Gumercindo, abaixou a cabeça a mexeu enquanto coçava a careca já sem o boné e respondeu:
- Olha, funciona assim: Você traz a sucata; alumínio, ferro, plástico, papelão, tudo separado. A gente pesa e após pesar faço as contas e te pago o valor.
Gumercindo arregalou os olhos e fez um sinal positivo com a cabeça. Lubrificou os lábios e continuou a falar:
- E onde consigo a sucata?
- Na rua, nos terrenos baldios... Olha, lá perto da favela, abaixo da marginal, tem um lixão. Ali é depositado todo o lixo... ou quase todo lixo da cidade e lá cê vai encontrar muita sucata é só ir lá e nos trazer.
- Tá certo, como eu chego lá?
- Mas cê pergunta hein home . – Se aborreceu o sujeito da balança, então num movimento rápido se afastou da balança e convidou Gumercindo para acompanhá-lo, o fez e juntos subiram até o parapeito do velho prédio abandonado. De lá o homem apontou para o lixão que ficava longe dali, mas alguns pontos negros no céu o denunciavam.
- O que são aquilo no alto? – Indagou Gumercindo.
- Ah, aquilo são urubus é só segui-los que você chega no lixão.
Gumercindo observou o lixão fascinado com aquela enorme nu- vem de urubus acima de tanto lixo. Boquiaberto permanecia observando sem se preocupar em incomodar o sujeito da balança.
Eis que ele ansioso o pressionou:
- Então já deu para saber onde que é não?
- Sim, acho que deu. – respondeu Gumercindo sem tirar os olhos daquela imagem.
- Então vamos , pois preciso trabalhar.

domingo, 7 de setembro de 2008

GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO & QUIPROQUÓS CAPÍTULO IX


Durante sua caminhada ainda sem destino, Gumercindo desvencilhou-se de seus pensamentos ao observar um enorme prédio, ficou espantado com sua altura, uma bandeira minúscula na ponta do prédio que parecia estar entre as nuvens, sua imagina-ção o levou até o último andar do prédio, não teria coragem para tentar subir até lá, o prédio imponente como era, devia ter seus guardiões severos e uma regra que com certeza o impediria de entrar.
Na sua imaginação o alto do prédio era fabuloso, dava para tocar as nuvens e talvez à noite pudesse pegar uma estrela ou pedir benção para Deus com as próprias mãos. Dali podia ver a cidade inteira e as pessoas se tornariam invisíveis, quase nada escaparia ao seu olhar, se sentiria o maior homem do mundo, o bosque da cidade, os ônibus, todos estariam ao alcance de suas mãos.
Porém a buzina alta de um desses ônibus desviou sua atenção e imaginação, espantou-se com o barulho e aquietou seus devaneios.
Novamente continuou seu caminho, dessa vez pensou em conseguir um destino, lembrou-se que precisaria dormir à noite e teria de ter um lugar para ficar.
Pensou nos bancos das praças, mas logo notou uma guarda com roupas escuras e cassetete na mão expulsando um velho mendigo que deitava num dos bancos.
Sentiu medo, imaginou se fosse com ele, teria medo de apanhar.
Durante seu trajeto, viu uma pequena ponte, onde raros carros passavam, então adentrou embaixo dela, sentiu conforto ali. Atrás de dois pilares que a sustentavam, tinha um enorme espaço limpo e bem cuidado, onde poderia dormir tranquilamente, protegido da chuva e do sol, além de ser fechado por uma parede enorme que fazia um bloqueio do vento da noite, o protegendo do frio.
Decidiu ficar ali, gostou muito daquele lugar embaixo da ponte, sentia-se que não seria incomodado, apenas um zum-zum, quando os carros passavam eram ouvidos e pela aparência do lugar, ninguém estivera ali por aqueles dias.
Sentou no lugar que escolheu para descansar e apertado, urinou ali mesmo, arrependeu-se mais tarde ao sentir o forte mau-cheiro que ficou, deitou-se e logo à noite chegou, antes de dormir, pensou no que lhe acontecera naquele dia. Dormiu e teve pesadelo com a mulher estranha, com o cozinheiro ranzinza de onde trabalhava e com o rapaz drogado.
No pesadelo todos eram seus inimigos e queriam agredi-lo, fugia e se escondia, mas eles sempre tentando agarrá-lo, até que conseguiu subir no prédio mais alto da cidade de São Paulo e ficou seguro. Lá ninguém o alcançaria e então no seu pesadelo, eles ficavam xingando e reclamando da má-sorte, de não poder agarrá-lo.
Quando já estava sentindo-se livre no alto do prédio, eis que seus algozes apareceram, além de outra figura conhecida: O contratante, que empunhava uma picareta nas mãos.
Assustado, tentou novamente fugir, a mulher estranha rodava sua bolsa, o rapaz drogado tinha convulsões, babava e fazia caretas, rastejando em sua direção. O cozinheiro ranzinza portava uma faca enorme e uma lima onde a amolava.
No seu traje branco, havia manchas de sangue que davam àquele homem, a imagem de um assassino.
Em seu pesadelo a sensação de tranquilidade foi-se embora, arregalou novamente os olhos e com os lábios cerrados, correu até o parapeito do prédio, continuou a ser seguido a passos lentos pelos seus algozes, então percebeu que a única maneira de livrar-se seria pulando daquele enorme prédio.
O fez, caiu em grande altura e quando começou a imaginar a queda, acordou, ensopado de suor.
Uma sensação de tranquilidade o confortou, porém naquela noite não conseguiu dormir e olhando para o teto da ponte e sentindo o zum-zum de um carro ou outro que passava esporadicamente naquelas horas da noite. Refletia sobre como as pessoas agiam e desis
- tiu de pensar ao perceber que no fundo eram todas iguais.
Ao amanhecer, levantou-se cedo, faminto e ainda cansado, caminhou até a praça para arranjar o que comer. A noite embaixo da ponte não lhe foi fácil, os pesadelos não lhe permitiram um sono agradável e o lugar apesar de limpo e protegido contra o vento, judiou de suas costas que já estavam acostumadas com o conforto da cama do alojamento.
O resultado foi ficar com o corpo todo dolorido, mesmo assim a fome não deu trégua e logo a “onça” do seu estômago começou a bramir:
- OHAAARRRRR , OHAAARRRRR...
Com a mão no estômago para controlar a ira da “onça”, continuou a caminhar em busca de comida. Mais alguns passos e a “onça” terrível voltou a agir:
- OHAAARRRRR, OHARRRRRR...
Desesperado, apressou o passo, quando viu uma grande concentração de pessoas num enorme salão, aproximou-se, observou um homem bem-vestido de terno, falando ao microfone:
- Então irmãos quem aqui aceita Jesus?
Gumercindo sentindo a fúria da “Onça” e sem perceber o que dizia o homem bem-vestido, ergueu a mão e logo o homem apontou para ele.
- Ali, temos um irmão!
Eis que a multidão abriu espaço e todos fitaram Gumercindo, que mal conseguia caminhar com a fome atiçada pela “onça”. Ainda com a mão na barriga, cambaleando, algumas pessoas o ajudaram a ir até ao homem bem-vestido seguido de aplausos da multidão.
Levaram-no até ao palco onde estava o homem bem-vestido e lá o sujeito começou a falar-lhe:
- Então irmão, aceita Jesus como salvador?
Gumercindo ainda com dor, abaixou-se e sussurrando respondeu ao microfone:
- Se ele me der de comer aceito.
A multidão observou o homem bem-vestido apavorada, disfarçou com as palavras de Gumercindo.
- Você quer dizer que aceita não é irmão? – E novamente o homem bem-vestido colocou o microfone para Gumercindo falar, mas a onça continuava sua fúria e não conseguia controlar sua fome e apenas abriu a boca quando o microfone se aproximou e o som do urro da onça veio com força:
- OHAAARRRR... OHARRRR... OHARRR... OHAAARRRR...
O barulho do urro foi enorme e explodiu nas caixas de som, assustando os presentes. O homem bem-vestido sem jeito e assustado com a situação, inventou uma desculpa para aliviar as pessoas:
- O irmão está endemoniado. Saia demônio, do corpo desse bom homem, saia demônio.
- E bradava com a mão sobre a cabeça de Gumercindo como se realmente excomun- gasse um demônio. Seus auxiliares seguraram Gumercindo que já abatido, mal conseguia se manter em pé, e a onça voltou a bramir:
- OHAAARRRR, OHAAARRRRR...
E já não assustava ao homem bem-vestido que se satisfazia, quando Gumercindo liberava o urro creditando-o ao demônio que dizia possui-lo. Colocou as duas mãos sobre Gumercindo, enquanto um dos auxiliares segurava o microfone para dizer em tom forte as palavras que excomungaria o demônio:
- Saia demônio, aqui não é teu lugar, em nome de Jesus, liberte esse pobre homem, eu ordeno que liberte esse homem, ele me pertence. O rebanho de Deus o quer de volta, saia demônio.
Quase desmaiando com a fúria da fome e a pressão do homem bem-vestido, Gumercindo rodava a cabeça com os olhos arregalados e a boca aberta. Derrepente observou entre a multidão atenta um sujeito gordo, segurando um enorme lanche.
Boquiaberto, o sujeito gordo nem se mexia enquanto aguardava o desfecho do episódio para comê-lo.
Gumercindo lambeu os lábios e com a fúria da “onça” somado à sua pouca mas resistente força, conseguiu se libertar dos auxiliares derrubando o homem bem-vestido com seu microfone, em seguida correu em direção ao homem gordo, apanhou o lanche que segurava e correu se afastando da multidão. Comia enquanto corria, e a multidão espantada o observava afastar-se.
Arfando e ainda cambaleando, devorava o enorme lanche, mal sabia o gosto, não dava tempo de saboreá-lo. Acalmava a onça do seu estômago a cada pedaço engolido.
Devorou o lanche e em pouco tempo a “onça” já não bramia, nem miava, sossegou.
Então Gumercindo a passos lentos, pensou em toda aquela loucura e voltou para seu reduto embaixo da ponte.