sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Ricardo Cunha na TV

GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO & QUIPROQUÓS - CAPÍTULO XIII


O dono do barraco feliz, chamou a mulher e os filhos, separou os quinhentos reais, valor do barraco e devolveu a Gumercindo o restante da soma que ajudou a contar.
Ainda segurava o dinheiro nas mãos quando ao entregar, Gumercindo o interrompeu:
- Leve todo o dinheiro.
- O que tu disse?
- Leve todo o dinheiro, compra rôpa e comida pros seus filhos.
O dono do barraco ficou calado, então emocionado arrastou a mulher para o canto, mostrou o dinheiro, guardou no bolso da calça, apanhou seus poucos pertences e rapidamente se retirou do barraco sem agradecer a generosidade de Gumercindo, que ficou observando a ida do homem, o fogo ainda aquecia a panela improvisada, o apagou e sentou-se numa cadeira velha enquanto sentia-se feliz por Ter conseguido um lugar para morar.
Colocou o carrinho dentro do barraco e tirou um cochilo numa cama velha que o antigo dono deixou.
Após o cochilo fechou o barraco com um velho cadeado e uma corrente enferrujada e levou a pouca sucata que tinha no carrinho de geladeira para a cooperativa.
Ao vender a pouca sucata que tinha, Gumercindo notou que o sujeito da balança também adquiriu um carro. Novo, bonito como não era comum aos seus olhos.
- Que carro bonito. – Comentou com o sujeito da balança, enquanto pesava a sucata de Gumercindo.
O sujeito fitou o carro, voltou sua atenção para a balança, observou Gumercindo e comentou:
- Comprei ontem.
- Comprou. – admirou-se.
- Comprei ué, por que a admiração? Trabalho pra quê. – aborreceu se o sujeito da balança.
- É que me parece ser um carro tão caro.
- Mais ou menos, comprei pra passear nos fins de semana.
- Eu também, comprei uma coisa ontem.
- Comprou? – admirou-se com o sujeito da balança, erguendo as sobrancelhas.
- Sim, um barraco pra mim morá.
- Um barraco? Onde arrumou dinheiro?
Gumercindo estranhou a pergunta do sujeito da balança e sem entender a reação deste, respondeu levemente aborrecido.
- Ora, eu não tô trabalhando não.
O sujeito da balança abaixou suas sobrancelhas ficou envergonhado com sua pergunta, disfarçou uma ponta de inveja e continuou o assunto:
- É claro, é que pensei que cê torrava tudo que ganhava com cachaça.
- Eu não bebo cachaça.
- É você já me disse.- sussurrou o sujeito da balança, encerrando a conversa, logo terminou a pesagem da sucata que Gumercindo lhe trouxe, acertou os trocados do valor e voltou a atenção para seu carro novo, enquanto Gumercindo saiu para uma nova coleta.
No caminho passou em um bar, onde comeu um salgado e um pingado, mandou caprichar no café com leite e tomou dois copos americanos cheios não queria parar cedo para o almoço, então decidiu se alimentar bem logo de manhã.
Após a refeição seguiu para o lixão, os urubus, fiel companhia daquele local se demonstravam numa pequena nuvem escura a alguns metros acima do lixão. Gumercindo os observou os admirou e continuava a empurrar seu carrinho de geladeira até chegar ao lixão.
Quando chegou, se tornou a atração do local, sendo apontado pelos outros catadores que cochichavam passar por eles.
Tamanhos cochichos, chamaram a atenção de Gumercindo que irritado os observava aborrecido, até que um dos catadores se aproximou:
- Ei Gumercindo, comprou um barraco hein danado?
Gumercindo estranhou a intimidade do sujeito com quem nunca havia conversado e com um aceno e sem graça fez que sim, o catador continuou a indagar-lhe:
- Ei Gumercindo, anda encontrando coisa de valor aí?
- As vezes, encontro.
O catador fez um bico com os lábios, assobiou abaixou a cabeça e voltou a conversar quando Gumercindo começava a vasculhar o lixo à procura de sucatas.
- Eu também moro na favela e já que a gente vamos ser vizinhos, agente podia nos conhecê melhor, que cê acha?
Gumercindo parou de vasculhar o lixo e se emocionou com a sugestão de outro catador, então voltou sua atenção num movimento leve, e com algumas lágrimas nos olhos respondeu com meio sorriso.
- Claro... podemos ser amigos.
O catador sorriu e olhou para os outros catadores que disfarçando os observava, com uma cara de cínico observou Gumercindo que lhe deu a mão.
Naquele dia Gumercindo arrecadou bastante sucata, mas apenas plásticos e papelão, pouca coisa de valor, com seus trocados garantiu o almoço e tomava banho no chuveiro improvisado de seu barraco, não sentiu saudades da ponte, mas sonhara com ela à noite e sentia falta do zum-zum dos carros na madrugada.
Nos dias seguintes começou a ajeitar seu barraco, arranjou panelas e mesa, além de roupas, não andava tão sujo e fedido, tomava banho dia sim, dia não era arredio a água, gostava, mas não o suficiente para banhos diários.
No lixão todos os catadores já o conheciam e lhe davam atenção, porém aproveitando da amizade iniciada começaram a lhe pedir dinheiro emprestado.
O primeiro a fazê-lo foi o catador que se apresentou com cara de cínico. Chegou até Gumercindo disfarçando, colocou a mão no carrinho de geladeira enquanto ele observava vasculhando o lixo e começou a conversa mole:
- Ei Gumercindo...
- Oi!- respondeu Gumercindo feliz abrindo um sorriso enorme e tocando o ombro do catador cara de cínico com sua mão direita.
- Sabe que é... Tá faltando comida em casa...não tô arrecadando quase nada...
- Sei ...- Gumercindo atento a conversa e sério arregalou os olhos enquanto ouvia e se emocionava com o que catador cara de cínico dizia, até comentar.
- Esses problemas judiam da gente.
- É pois eu tô precisando de dinheiro, cê não pode me dar uns trocados não?
- Claro.- respondeu Gumercindo ainda com felicidade.
Então pôs as mãos na cintura, retirou um novo pacote dentro de um saco plástico e indagou:
- Quanto você quer? – o catador cara-de-cínico viu aquele monte de dinheiro e respondeu:
- O que você puder me emprestar, depois eu te pago.
- Então leva tudo, amigo é pra isso não é?
Decidiu Gumercindo com o enorme sorriso ainda no rosto. O catador cara de cínico também sorriu, apanhou a quantia oferecida por Gumercindo com generosidade e saiu sem agradecer.
Gumercindo voltou a vasculhar o lixo, enquanto o sujeito se aproximava dos outros catadores e entre uma risada e outra conversa- vam, ao ouvir uma gargalhada do grupo de catadores, Gumercindo se emocionou, ficou feliz por ajudar alguém que precisava e acreditava que aquelas gargalhadas eram de felicidade, pelo catador Ter saído de uma situação tão difícil que é a de passar fome.
Arrecadou o que pôde novamente em seu carrinho de geladeira e foi vender na cooperativa.
Com o dinheiro que conseguiu com a sucata que vendeu, comprou seu almoço e guardou alguns trocados.
No dia seguinte, começou uma nova coleta, arrecadou outros trocados, fez sua economia na cintura e voltou ao lixão para outra coleta, sendo saudado ao chegar pelos catadores, outro deles veio lhe pedir dinheiro, novamente com conversa mole se aproximou:
- Ei Gumercindo, tô com umas contas vencidas tu não pode me emprestar uns trocados.
- Claro que posso. Quanto quer?
- Faz o seguinte, me empresta quanto tiver depois te pago.
Gumercindo fez o que o sujeito sugeriu e novamente deu-lhe tudo que tinha e novas gargalhadas se ouvia quando o sujeito voltava a se agrupar com os catadores.
O catador cara-de-cínico cumprimentava Gumercindo mas evitava se aproximar para uma conversa nos dias que se seguiram e o mesmo fez outro catador que também pediu dinheiro emprestado.
Logo outro catador se aproximou de Gumercindo e oferecendo sua amizade, pediu dinheiro emprestado. Dessa vez a soma havia sido maior, Gumercindo arrecadou uma boa quantia naqueles dias e econômico, havia gasto o mínimo possível, pensava em arrumar seu barraco e acreditava que o dinheiro arrecadado somado com o que lhe deviam, seriam suficiente para construir uma casa de alvenaria no lugar de barraco. Mesmo assim emprestou dinheiro para o terceiro catador que lhe pediu sem cerimônia deu-lhe novamente tudo que guardou, confiante no sujeito que prometeu lhe pagar cada centavo.
Numa outra semana Gumercindo já havia juntado outra quantia com suas três coletas diárias, guardava o suficiente para comer, não gastava com seu barraco e não havia recebido o dinheiro que emprestou para os três catadores, que quando o viam evitavam sua presença.
Outro catador, sabendo dos empréstimos veio lhe pedir auxílio, Gumercindo não viu problema em ajudá-lo, porém emprestou apenas metade da quantia, ficou receoso em demorar para receber.
Três dias depois outros dois catadores vieram pedir-lhe dinheiro, eram os sujeitos que o jogaram do caminhão que continuavam a coletar sucatas ali naquele local.
- Ei Gumercindo...- Chamou um dos catadores com um falso sorriso. Gumercindo os olhou de cima embaixo fez uma cara séria e perguntou em voz baixa:
- O que vocês querem?
- Sabe o que é Gumercindo, a gente queria te pedir desculpas pelo ocorrido no pau-de-arara...
Gumercindo cerrou os lábios e arregalou os olhos, não esperava essa reação daqueles sujeitos que lhe fizeram mal, eis que o sujeito continuou, escoltado pelo outro:
- Então Gumercindo, nós erramos.
- Mas nós estamos arrependidos, queremos teu perdão.
- Meu perdão?- espantou-se Gumercindo, que naquela altura da vida beirando os trinta anos jamais ouvira pedido tão forte. Então pensou enquanto refletia, coçava a cabeça com o boné.
Espichou as barbas com as mãos e decidiu perdoar os sujeitos.
- Perdôo sim.
- Que bom, sabia que tu era cabra de bom coração. – Gritou um dos catadores, cumprimentando eufórico, o outro fez uma cara de alegria e começou uma nova conversa:
- Já que nós somos amigos , acho que podemos contar com sua ajuda, afinal amigos são para ajudar.
- É ... acho que sim.- concordou Gumercindo sem pensar.
- Nossa situação tá braba Gumercindo, só catando lixo, catando lixo e nada de dinheiro.
- Mas por que não vendem na cooperativa?
- Aquele sujeito que vive na balança, TOCOU A GENTE DE LÁ, É RAÇA RUIM!- Exclamou. – Agora tu não né Gumercindo, tu é pessoa boa.
- Mas ele nunca me fez nada de mal. – retrucou Gumercindo ao catador que o abraçou antes de responder enquanto o outro lhe fazia sinais.
- Ele deve tá te enganando, mas isso tu descobre um dia, eu quero te pedir um favor como amigo.
- Peça...
- Nos empreste um pouco de dinheiro, estamos duros e sei que você vende bem sua sucata.
- Eu podia emprestar, mas já emprestei dinheiro pra esse povo todo e não recebi nada.
- Nós somos diferentes Gumercindo. – retrucou o outro catador que apenas fazia sinais durante a conversa. – Vamos te pagar certinho viu? Não é mesmo? – observou o seu parceiro com a cara fechada.
- Além do mais precisamos comer e tu não vai se vingar na gente né Gumercindo? Nos dê o que comer homem, amanhã pode ser tu que esteja precisando, pense nisso.
Gumercindo pensou, sentiu-se mal com aquela situação, lembrou-se da onça, que há muito não o incomodava, assustou-se e amedrontado decidiu:
- Tudo bem, tome aqui o dinheiro que tenho. – retirou o pacote e o entregou com sacola e tudo. – Me paguem até o final do mês tudo bem?
- Claro Gumercindo, amigão, até o fim do mês o dinheiro está na sua mão.
- Sabia que podia contar com tu Gumercindo comentavam os sujeitos se afastando cheios de felicidade, Gumercindo ficou feliz por estarem felizes e novamente voltou ao trabalho, decidiu que não juntaria dinheiro por enquanto, gastaria em seu barraco e no que precisava e no fim do mês, havia comprado algumas roupas que lhe deixavam melhor, suas roupas velhas e rasgadas assusta- vam até aos cachorros, além de incomodar-lhe com os olhares perscrutadores das pessoas na rua.
Suas coletas iam bem, não encontrou nada de valor como as placas de bronze, mas os papelões e plásticos eram suficientes para comer e manter seu barraco. Adquiriu madeiras novas para reformar seu teto que já sofria em época de chuva e reforçou sua porta temendo os ladrões.