domingo, 31 de agosto de 2008

GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO & QUIPROQUÓS CAPÍTULO VIII


As refeições sempre feitas na cozinha-refeitório do alojamento, eram servidas em bandeijões e os trabalhadores esfomeados faziam uma enorme fila e comiam o máximo que podiam.
Gumercindo preocupado com a volta da onça fez o mesmo e adorou a comida do cozinheiro ranzinza. Após o almoço foi falar com o cozinheiro que apressava os trabalhadores para poder lavar os bandeijões, pressa desnecessária para aqueles sujeitos esfomeados. Gumercindo aproximou-se do cozinheiro que segurava algumas bandejas sujos e comentou:
- Tua comida é boa.
O cozinheiro ranzinza observou o rosto de Gumercindo com seu olhar maldoso e respondeu:
- Não pedi a tua opinião.
Então espantado com a resposta ficou em silêncio e foi descansar para retornar ao trabalho.
Os dias passaram e assim era a rotina do trabalho de peão-de-obra no alojamento. Resumia-se em: acordar, tomar café com pão, trabalhar, almoçar, descansar, trabalhar, almoçar, descansar, trabalhar, jantar, tomar banho, dormir, acordar e repetia tudo novamente. Aos domingos , único dia de folga, os trabalhadores se reuniam para contar piadas, jogar baralho e sentir saudade.
Gumercindo nada fazia, ficava pensando, tinha vontade de conhecer melhor a cidade, mas o passeio e a saída do alojamento não lhe eram permitidos.
O contratante avisava a todos:
- Querem sair? Podem ir, mas não os aceito de volta. – Não querendo ficar sem o trabalho, Gumercindo não saia, mas sentia saudade da vida na rua, de ver as outras pessoas das árvores, dos trocados que ganhava. Lembrou-se dos míseros trocados e percebeu que até então nada ganhou e estava há dois meses no trabalho.
Então após o descanso de uma semana de trabalho, decidiu perguntar ao contratante sobre o fato. Esperou a manhã de trabalho da semana seguinte, quando o contratante chegava na obra da mansão, ao vê-lo, deixou os três pedreiros e foi falar lhe falar:
- Ei seu contratante...
- Diga.
- É sobre dinheiro, quanto vou ganhar?
O homem disfarçou, olhou para alguns papéis que segurava nas mãos e respondeu:
- Que dinheiro? Te dou comida, casa e até mando lavar suas roupas.
Gumercindo pensou na resposta e continuou:
- tá certo, a comida é boa, a casa também, roupa eu tenho pouco, na rua lá no Ceará eu ganhava uns trocados e podia sair para ver as árvores, gente passando e voltando, os carros... eu sinto falta disso.
- Escute aqui Gumercindo, você devia me agradecer por te ajudar e não me pedir dinheiro. Quantas pessoas não gostariam de estar no seu lugar hein? Se tu sai hoje, amanhã eu consigo dez para por em seu lugar, você que sabe. Se quiser ir, pode ir, mas eu te aviso, lá fora a vida é dura, tu vai passar fome, frio, desprezo, não esqueça que aqui não é o Ceará.
- Então o senhor não pode me levá de volta?
- Claro que não, eu paguei p’ra tu vir, eu não pago para tu voltar, ficou louco? P’ra mim é prejuízo.
Gumercindo voltou a pensar, pensou e decidiu voltar ao trabalho.
O contratante chamou um dos seus trabalhadores mais próximos e ordenou:
- Fica esperto com esse sujeito.
O trabalhador fez sinal de cabeça, concordando com a ordem. Gumercindo trabalhou como nos outros dias e sentia-se triste em não poder receber seus trocados e comprar seu pingado na hora do almoço, ou passear pelas praças. Porém o que o contratante disse, fazia sentido, não conhecia São Paulo e podia sofrer muito, sem conhecer ninguém naquela grande cidade.
Ao passar dos dias foi se decepcionando com a própria cidade, de que adiantava estar em São Paulo com toda aquela riqueza que lhe foi dita diversas vezes no Ceará, mas não podia conhecer, e nem desfrutava da beleza das árvores e das praças, nem conhecia as pessoas. Vivia ali com os trabalhadores que eram como ele: Nordestino e nem parecia Ter saído do nordeste, ainda por cima sofria a mesma indiferença ou quando esta faltava, era motivo de chacotas pelos homens hostis que com ele trabalhava. Sentiu apenas um pouquinho da cidade quando chegou, mas teve que sofrer no pau-de-arara, ser despejado e caminhar muito para ter sentido, apenas isso.
Não achava justo ficar ali sempre trabalhando, apenas para comer e Ter lugar para dormir.
Aos poucos foi se cansando e pensava muito durante o trabalho e assim se foi três meses, quando enfim decidiu partir:
- Hoje vou embora. – Falou ao levantar-se da cama, rapidamente vestiu suas roupas velhas, tomou o café com pão, enquanto os trabalhadores cochichavam a respeito do que disse, então foi até o cozinheiro e avisou:
- Hoje eu vou embora, não quero mais viver aqui, quero conhecer a cidade.
- Ficou biruta? – gritou o cozinheiro espantado. – Você não pode ir embora.
- Como não?
- Está devendo, trabalhou aqui, mas comeu durante esse tempo todo.
- Mas eu preciso ir embora.
- Por que eu não aguento mais viver aqui.
Durante a conversa, o contratante apareceu e pediu explicações para um dos trabalhadores:
- O que está havendo?
- O Gumercindo quer ir embora.
O contratante então foi em direção à Gumercindo e pediu para explicar o motivo da conversa:
- Por que quer ir embora Gumercindo? Aqui tu tem tudo, o que tu quer mais?
- Quero ver a cidade, passear, ganhar uns trocados, tomar um pingado.
O cozinheiro ouvindo a conversa o alertou:
- Lá fora tu vai passá fome.
- Eu sou acostumado a passá fome.
- Mas e o frio, lugar p’ra dormir? – continuou o cozinheiro.
- Eu sempre dormi pelo caminho, durmo em qualquer lugar.
- E seus amigos? – Tentou convencer o cozinheiro.
- Eu não tenho.
O cozinheiro ficou aborrecido e voltou aos seus afazeres, o contratante pensou no que faria então resolveu:
- Olha Gumercindo, se tu quer ir, vá. Só que pense bem, eu não vou te querer de volta e não aceito reclamação.
- Tudo bem, eu não vou reclamá. – respondeu Gumercindo e sem despedir-se, saiu em direção ao portão de entrada. Logo um dos trabalhadores levantou-se da mesa do refeitório e sugeriu ao contratante:
- Se quiser podemos pegar ele na marra, damos um pau nele e fica aqui para sempre.
- Não, deixe que vá, amanhã ele volta, conheço esses tipos. – respondeu o contratante, enquanto todos observavam a saída de Gumercindo. Ao aproximar-se da porta, o contratante decidiu falar:
- Ei Gumercindo, boa sorte, mas se precisar pode voltar.
Gumercindo olhou para os trabalhadores, para o cozinheiro que fazia cara de triste e o contratante e em silêncio voltou a abrir o portão. Ao abri-lo uma forte brisa fechou seus olhos e apontou o caminho da rua.
Na rua sentiu-se feliz, o barulho do trânsito o agradava, sentia-se livre, perambulava por entre as praças sem destino certo, sentou-se num banco, observava as pessoas e degustava a beleza da manhã. Respirava o ar agradável do bosque, achou engraçado a estátua de um vulto que desconhecia, forrada de fezes de passarinhos.
As pessoas não se importavam com a sua presença e ele também não dava importância para a atenção dos transeuntes.
Continuou a caminhar pelas ruas da cidade em determinado momento quase foi-se embora com sua curiosidade, pobreza e tudo o mais. Ao atravessar uma avenida descuidou-se e um carro desviou com uma freada brusca, evitando o atropelamento com uma buzina alta e vários palavrões.
Gumercindo assustado com o episódio, evitou as grandes avenidas, e continuou seu caminho sem destino pelas ruas mortas.
Aquelas ruas suportavam em sua vizinhança casas e pessoas velhas, além de convidados nada ilustres, como bêbados-mendigos, prostitutas, travestis e outros párias da sociedade.
Enquanto caminhava, Gumercindo arregalava os olhos ante o que via; mulheres estranhas, sujeitos que como ele não tinham para onde ir e ficavam por ali gastando o que não possuíam com bebida.
Espantou-se ao perceber um jovem entre eles, com roupa gasta como a sua, aparência de bom-menino, mas mexia freneticamente os olhos e a boca num movimento que aterrorizava quem o observava.
Gumercindo desviou seu olhar e não entendeu o motivo daquela reação do menino, sentiu pena, mas confundia-se com aquilo, apesar de nunca ter bebido.
Nunca teve vontade de beber e não dava importância à bebida, sabia quando alguém estava bêbado e como ela reagia, e sua reação em nada parecia com a daquele rapaz. Então preocupado parou com sua caminhada, observou novamente o garoto com seus movimentos frenéticos e perguntou para uma mulher estranha:
- O que ele tem?
A mulher estranha fitou Gumercindo, apoiou o braço esquerdo com o direito, enquanto fumava um cigarro, então com uma voz masculina respondeu:
- É a paulada do crack.
- Do que?
- Crack meu bem, vai me dizer que não conhece?
Meio abobalhado e notando que a mulher estranha mais parecia um homem vestido de mulher, Gumercindo continuou:
- Não conheço não.
A mulher estranha, deu uma tragada em seu cigarro, jogou a fumaça para cima e com a voz baixa e um leve sorriso explicou:
- Meu bem, você é ingênuo, aquele menino tomou droga e o que ele tomou chama-se crack e o efeito é aquilo que você está vendo.
- Mas parece que ele vai morrer.
- Que morrer que nada bem. – Disse a mulher estranha chacoalhando a cabeça para o lado e em seguida ajeitando seus cabelos cacheados à altura do pescoço. – Este daí daqui a pouco está atrás de mais crack, é só o efeito passar que ele quer mais.
- Mas por que?
- Por que ... – Quando a mulher estranha se preparava para responder a Gumercindo, surpreendeu-se com o rapaz que de repente deixou aquele movimento com os olhos e a boca, ergueu a cabeça, olhou para os lados, sorriu, levantou-se e começou a andar.
Gumercindo afastou-se da mulher estranha, abordou o rapaz, e o indagou:
- Ei, você está bem.
O rapaz estranhou a pergunta, mas respondeu:
- Tô sim.
- E onde vai agora? – continuou Gumercindo.
- Vou buscar outra pedra.
- Outra o quê?
- Pedra parceiro, deixa eu ir. – E apressado deixou Gumercindo e seguiu rumo atrás de mais entorpecente. Boquiaberto ficou ante a reação da mulher estranha:
- AH, AH, eu não falei? – debochou.
Então confuso com a atitude do rapaz em querer sentir-se mal, em passar mal e ficar com uma aparência medonha, Gumercindo continuou a caminhar seguido pelo olhar da mulher estranha.

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