sábado, 2 de agosto de 2008

GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO E QUIPROQUÓS - ROMANCE DE RICARDO CUNHA - CAPÍTULO IV

A viagem levaria três dias e três noites, Gumercindo jamais havia viajado numa distância dessas e nas primeiras horas de viagem sentiu desconforto nas costas, levantou-se, porém caiu no assoalho do pau-de-arara arrancando risos dos outros passageiros.
Ergueu-se novamente, mas decidiu se sentar na tábua do assoalho, onde sentiu conforto. O caminhão do pau-de-arara era forrado por uma lona cheia de remendos com costuras malfeitas que resistiam à chuva, mas esta era algo incomun por onde passava, a lona era segura por dois pilares de cada lado e um caibro de madeira que varava de fora-a-fora a carroceria do veículo, para os passageiros havia algumas ripas pregadas acima do assoalho, onde podiam se sentarem com maior proteção contra os solavancos. Gumercindo preferiu o assoalho pois podia descansar as pernas sem precisar dobrá-las.
Na cabina viajavam o motorista mais um ajudante, cuja principal obrigação era conversar para que o sono ou tédio não tirasse a atenção do condutor.
Para Gumercindo e os outros passageiros, a estrada era pouco visível, tinha que esticar o pescoço e erguer parte da lona que cobria a entrada-saída do pau-de-arara.
Gumercindo curioso, exercitou-se para ver as paisagens, se ergueu próximo a entrada-saída enroscou a cabeça onde podia ver sem incomodar os outros passageiros com sol ou poeira, então conseguiu uma brecha com vista para fora.
Estava satisfeito com o que via; cabras, montanhas, crianças acenando, nem a poeira da passagem incomodava seus olhos.
O sol clareava as poucas árvores próximo à estrada trazendo uma linda cor nas folhas. Gumercindo prestava atenção nas plantas secas que por falta de água perderam a vida, havia os barracos das vilas por onde passavam, com pessoas tristes, velhas e acabadas. Gumercindo se perguntou por que não faziam como ele tentar a sorte num lugar melhor ao invés de ficar ali sofrendo sem água, sem comida, a vida inteira. Mesmo sabendo que havia uma cidade onde teriam o que precisassem.
Achava estranho, mas imaginou que tivessem medo, ou não tinham dinheiro para pagar o pau-de-arara e ninguém apareceu para ajudá-los, ou talvez gostassem daquela vida e estavam satisfeitos ou conformados com a própria desgraça.

No primeiro dia de viagem, Gumercindo observava as paisagens sem piscar, na hora do almoço sem dinheiro e sem comida, pediu um pedaço de tapioca e um gole d’água para um dos passageiros, o sujeito aparentemente com quarenta anos de idade e com muitas rugas ao lado da barba rala, fez cara de mau-gosto, mas compreendeu a situação do pedinte e deu-lhe o que pediu.
A tapioca, um alimento feito à base de polvilho e coco, reunia nutrientes para aqueles homens de vida difícil. Nas suas raras refeições, nada melhor do que utilizar a riqueza dos alimentos que conseguiam.
Para acompanhar tomavam caldo-de-cana; a garapa, o açúcar fortalecia e dava ânimo, então muitos além de bebe-lo o usava para fazer guloseimas, entre as mais conhecidas preferiam a rapadura, e era carregada pelos retirantes, com pouca quantidade apanharam uma barra enorme e a dividiram, fazendo a festa dos pequenos e dos grandes, incluindo Gumercindo que novamente pediu um pedaço.
Dessa vez o dono da rapadura dividiu sem pestanejar, com cara de homem bom, sentou-se com sua mochila ao lado de seus três filhos e a mulher abriu um guardanapo, esticou e serviu a quem se interessava.
O caminhão não esperava muito tempo para as refeições, cada um sabia disso, era apenas tempo de comer, descer, se aliviar e se sentar novamente para prosseguir a viagem.
Gumercindo sentia-se feliz por conhecer pessoas novas, tentou dialogar com o homem bom que dividiu a rapadura, este não pôde dar-lhe atenção pois seu filho menor se assustou com sua presença e chorou, eis que o homem solidário o acolheu no braço e o acalmou.
Então Gumercindo voltou para sua brecha no fundo do caminhão, e ficou olhando as paisagens, até anoitecer.
Não pensou sequer em como seria sua nova vida em São Paulo com o contratante. Seu trabalho de peão de obra era um serviço comum, porém Gumercindo mal sabia como era o dia de trabalho desse trabalhador.
Ele que sempre deixou se levar pelos impulsos, comia quando pedia ou ganhava algum trocado, ou o que podia e lhe davam, esta era uma grande aventura. Estava surpreso naquele momento com a beleza das paisagens, cortavam o sertão e já deixavam aquela miséria para trás, os homens nos barracos já eram escassos, via apenas árvores e cerrado enquanto escurecia e começou a ver muitas estrelas no céu, então cochilou próximo a brecha.
Nos outros dias de viagem, o ânimo de Gumercindo já não era o mesmo; exausto e com o corpo doendo se aborrecia com as paisagens ou quando algum outro passageiro o olhava com cara feia.
Na hora das refeições seguia o mesmo ritual de pedir para comer, ás vezes de forma amistosa, dessa vez não se importou com sua ação. Um passageiro abriu a marmita com escassos pedaços de tapioca que mal davam até o fim da viagem, esfomeado, Gumercindo se aproximou e apanhou um grande pedaço, eis que o homem irritou-se:
- Que tu tá pensando?
Gumercindo o olhou com a boca cheia de polvilho e nada respondeu, o homem continuou:
- Tu é folgado, serrou minha comida a viagem toda e ainda por cima meteu a mão sem pedir autorização.
- Este sujeito é folgado, precisa de uma lição. – comentou outro passageiro, também aborrecido com a investida de Gumercindo.
- Não sou folgado, tô com fome, só isso.- respondeu com tom ingênuo, mas para aqueles homens acostumados com rixas e maldade, soou como atrevimento.
Então o dono da marmita levantou-se irado, deixando o resto da tapioca no assoalho do pau-de-arara, agarrou Gumercindo que ainda comia o pedaço furtado e se engasgou, o outro passageiro, cúmplice no aborrecimento, apoiou o ato e então juntos esbofetearam Gumercindo e aos olhares covardes dos outros retirantes o jogaram para fora do pau-de-arara, se aprofundando com a queda na poeira da estrada.
O motorista não percebeu e continuou a viagem, Gumercindo se machucou com o tombo e assustado tentava compreender como aconteceu o fato.
Ainda engasgado, tossia, engolindo poeira a cada tosse, com os olhos cheio de lágrimas, viu ao longe o pau-de-arara partir e o deixar no meio da estrada, num lugar onde desconhecia, ralou os braços e doía sua perna esquerda, começou a caminhar, a caminhar e após dois dias e uma noite caminhando, pedindo e sofrendo, chegou a São Paulo.

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