sábado, 26 de julho de 2008

GUMERCINDO: MANDINGA, PÉ-DE-PATO E QUIPROQUÓS - ROMANCE DE RICARDO CUNHA - CAPÍTULO III


Dormiu embaixo de marquises, em praças, igrejas, lojas fecha- das, lojas abertas onde era expulso aos chutes dos seguranças, museus, escadarias de todos os tipos, estátuas de vultos, estátuas de anônimos, esculturas de arte moderna, jardins, viadutos, pontes não acabadas, casas de caridade, ferro-velho onde foi mordido por um cão, clube de campo, campo de futebol de várzea, campo de futebol de salão, campo de futebol de botão jogado no lixo, campo da favela onde ganhou seu nome:
- Ei Gumercindo...- gritou um dos jogadores da pelada no campo;
- Pega a bola p’ra gente. – pediu com tom autoritário na voz.
O menino que descansava num canto próximo de onde a bola parou, ficou sem entender o recado, nunca ninguém o chamou por um nome, pensou que não fosse com ele.
- Do-do que me chamou? – indagou emocionado, gaguejando em sussurro.
- De Gumercindo. – respondeu o homem o apressando com sinais
Para que pegasse a bola.
Ainda intacto, o menino continuou:
- Mas por que Gumercindo?
- Sei lá, podia te chamar de Jão, Pedro, Paulo, Ferdinando, Astrogildo, Egídio, Belchior, mas te chamei de Gumercindo já que não sei qual é teu nome.
O menino ficou espantado, uma sensação incomodava seu peito, o homem bravo com seu silêncio o xingou e foi apanhar a bola.
- Deixa que eu pego. – retrucou o menino que correu, pegou a bola e chutou, sem talento para o esporte, a bola de capotão foi numa direção contrária, quicou na rua, quebrou a janela de uma casa, derrubou um vaso de flor, que espatifou e em seguida a bola rolou em frente à um carro que a atropelou, acabando com a alegria da pelada.
- Seu fila-da-puta , pé-torto dos inferno, o que tu fez? –Xingou o homem que pediu a bola.
- Fila da puta não, tenho nome: Gumercindo.- respondeu para o homem bravo, deixando irritados os jogadores da pelada, alguns pensaram em bater no menino, que feliz com seu nome, caminhou rumo à cidade sorrindo.

* *

Nos dez anos seguintes após seu batismo inusitado, Gumercindo ganhou trocados com esmolas, trabalhou cuidando de carros caros, vendeu bugigangas para aproveitadores, mas continuava morando na rua, não fazia amizades, apenas contatos com outras pessoas, era comum ser roubado por ladrões e moleques-de-rua e apanhar da polícia e de exploradores.
Ainda não possuía documentos e não sabia ser necessário tê-los,
Não sabia ler, mas sabia falar e se comunicando descobriu que havia transporte para São Paulo, e ouviu que esta cidade era grande, rica, onde as oportunidades de comer e viver melhor eram maiores, diziam coisas maravilhosas sobre São Paulo; que havia pessoas de todos os tipos: Ricas, felizes, pessoas amáveis e bonitas. Nas ruas à noite, muitas luzes reluziam e tinha comida farta, soube que trabalhando naquela cidade, ganhava-se muito dinheiro, até para roubar era bom. Coisa que Gumercindo desprezava, já havia sido roubado muitas vezes e odiava o ato e as pessoas que o cometiam, não queriam jamais sentir-se como um deles.
As histórias e estórias sobre São Paulo alegravam Gumercindo então procurou um dos fretes de pau-de-arara da cidade para saber como podia ir.
Não foi difícil encontrar o transporte, o avistou próximo de uma praça ajuntando pessoas para a aventura.
Aproximou-se, observou o caminhão que aos poucos enchia de gente disposta., pessoas que como ele sentiram a emoção da cidade grande, os encantos e a beleza espalhada por quem a conhecia. O motorista contava algum dinheiro e incentivava os passageiros, Gumercindo não chamou sua atenção, então a roubou:
- Ei home ... o que preciso para ir p’ra São Paulo?
O homem atarefado, olhou para Gumercindo mal-trajado e sujo e se incomodou, então rude respondeu:
- Precisa de dinheiro, coisa que tu não tem.
- Mas eu tenho. – Bradou um sujeito estranho, meio gordo, alto, aparência diferente dos habitantes da cidade, com roupas simples mas bem tratada, impunha respeito onde estava, seu bigode era enorme, cuja pelugem invadia seu nariz emporcalhando sua figura, no pulso um relógio prateado com pulseiras de alumínio demonstrava que o homem já havia visitado a cidade grande muitas vezes e seu ar de familiarizado com aquele ambiente levava a crer que tinha muitas posses e consumia os produtos encantadores de lá.
Gumercindo olhou para o homem, esperou uma nova reação e ele o fez:
- Estou precisando de peão na obra que tenho em São Paulo, tu quer trabalhar para mim? É trabalho duro, mas te levo de graça e lá te dou moradia e comida.
Gumercindo ficou impressionado com a proposta, nunca havia sido tratado daquela maneira, sentiu-se importante para o homem, seu coração disparou e sentiu a alegre oportunidade de poder viajar.
O motorista encabulado com a atitude do homem da proposta, permaneceu calado, esperando o desfecho, estava certo quanto aos recursos de Gumercindo, que naquele dia não havia ganho nada e as poucas moedas que tinha, eram suficientes apenas para um pingado na hora do almoço.
- É claro que quero. – respondeu Gumercindo liberando um sorriso que abrandou sua aparência pavorosa.
- Então vamos, tu não tem bagagem? – indagou o homem da proposta.
- Não sinhô, apenas a rôpa que visto.
O homem da proposta não se importou com a indigência de Gumercindo, acertou o valor do frete com o motorista e despediu-se:
- A gente se encontra lá.
- Ué o sinhô não vai comigo?
- Não eu vou de ônibus.
- Mas como eu te acho lá?
- Eu sei onde é o ponto final do frete, fica trânquilo, eu chego primeiro que tu e quando chegar eu te espero no ponto.
- Tá bom.
Então o homem da proposta se afastou e seguiu seu caminho, Gumercindo subiu no pau-de-arara, aconchegou-se num banco duro, cumprimentou os passageiros que o ignoraram, o motorista fez os acertos finais e partiu rumo à cidade grande.

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